Dei-te Quase Tudo

A nova telenovela da TVI com nome de canção/ verso de canção/ adaptação de verso de canção (canção essa que serve de genérico de apresentação da dita telenovela) é, se a minha atenção muito diagonal a estas coisas não engana, das pouquíssimas (a primeira?) em 20 e tal anos de produção local deste género a concentrar um bloco essencial da narrativa no Porto.
As telenovelas nacionais tendem a centrar-se nos territórios que os seus argumentistas melhor conhecem. Ou seja, e por ordem decrescente de relevância, são Lisboacêntricas (porque o mundo gira em volta de Lisboa e não vale a pena dar-se ao trabalho de conhecer mais nada - o que, infelizmente, até faz mais sentido do que parece), Alentejocêntricas (porque quem vive em Lisboa gosta de passar férias no Alentejo, ou gostaria de lá comprar um monte, ou porque de lá veio trabalhar para a capital), Algarvecêntricas (porque de Lisboa lá vão parar em todos os fins-de-semana concebíveis) e Beiracêntricas (porque de lá escorre uma parte importante da população satélite da capital).
Pela mesmas razões de conhecimento em primeira mão, as telenovelas lusas são sobretudo escritóriocêntricas, cafécêntricas, praiacêntricas. São também apartamentocêntricas e (agora)liceucêntricas por questões de senso comum. E mansãocêntricas, por óbvios motivos de sonhos de aspiração dos espectadores.
Apesar da generosa quantidade de portuenses que vive em Lisboa, parece haver um certo embatucanço da parte dos criadores destas histórias em focar narrativas em redor da Invicta. Talvez porque, a acreditar em teorias de conterrâneos, os portuenses de Lisboa são os primeiros a querer dissolver a sua identidade regional. A relação destas pessoas com o Porto tende a ser de ressentimento (é por isso que alguém que eu conheço chama a esses portuenses lisboetizados de boavisteiros... - e isto é, obviamente, uma generalização), coisa que não pressinto na relação dos alentejanos e beirões lisboetas com os sítios onde têm as raízes familiares (há, nestes casos, pelo menos aparentemente, mais afecto).
Deve ser por causa dessa falta de experiência em pôr câmaras telenovelescas a filmar no Porto que ontem, na mansão JML, se tenha ficado boquiaberto ao tropeçar num episódio da novela com nome de cantiga do Paulo Gonzo.
Há a questão do sotaque e da linguagem - as personagens mais novas não têm sotaque (enquanto os adolescentes da Invicta têm, paradoxalmente, sotaques tripeiros cada vez mais carregados ou esforçam-se cada vez mais para esconder envergonhadamente esse sotaque numa película de fineza à maneira da Foz), os seus pais também não (e aqui essa neutralidade até faz relativo sentido), e da geração dos seus avós há uma senhora que é florista no mercado do Bom Sucesso, que fala como se tivesse saído de uma revista do Parque Mayer e trata os adolescentes por você - os comerciantes dos mercados do Porto e respectivos familiares e clientela e familiares da clientela devem ter soltado uma versão local do internacional «what the fuck...?».
Mais divertida e surreal é a questão geográfica. As duas amigas adolescentes/ vintonas que estão no mercado do Bom Sucesso onde a mãe de uma delas é florista dizem que vão indo para a escola com aquele ar de que a escola é já ali ao lado. Na cena seguinte, aparecem a caminhar na Praça dos Leões, junto aos Clérigos. As miúdas, é notório, gostam imenso de caminhar pela cidade fora - de autocarro, com a quantidade de obras pelo meio, nunca chegariam tão depressa do Bom Sucesso aos Clérigos (e, salvo erro, já não universidade nem há liceus perto dos Clérigos).
Depois, uma outra miúda, de Lisboa, de boas famílias e em idade universitária, chega à noite à estação de S. Bento (há muito tempo que não via S. Bento tão asseada - esta pinta de postal turístico nas imagens dos sítios do costume da Invicta, sobretudo da baixa decrépita e abandonada durante a noite, é outra coisa que não bate certo). Aproxima-se de um senhor idoso, desdobra uma folha/mapa e pede ajuda na orientação. O senhor aponta o dedo para a esquerda e para a direita, também com ar de que o sítio de destino da miúda é algures ali ao lado, e na cena seguinte ela aparece a percorrer o passeio da Avenida do Brasil, praticamente do outro lado da cidade. A montagem sugere que ela fez o caminho a pé, mas mesmo que tivesse apanhado um táxi é completamente absurdo que, querendo ela dirigir-se a casa do namorado, tenha aterrado num longo passeio marítimo, numa noite deserta, saco de viagem ao ombro.
Não sei se estas incongruências geográficas acontecem noutras cidades, noutras novelas, mas estas montagens narrativas por imagens sabem a negligência, a estarem-se nas tintas se as coisas batem certo. É que, apesar de tudo, há praí um milhão de espectadores potenciais que podem ficar aparvalhados com vendedoras do Bom Sucesso a deitar para fora uns «vocês» de Centro Comercial Colombo, uns jovens tripeiros que dizem «cachapada na mona» (ahn???) e soltam «iás» a cada cinco frases (tããããão 1999), e catraias tipo Morangos Com Açúcar que dão caminhadas nocturnas da baixa à Avenida do Brasil.
(Numa coisa os argumentistas devem ter acertado. Na casa lisboeta há uma estereotipada empregada residente já idosa, figura maternal que flutua pela casa, trata a canalhada por você e a canalhada tem autorização para mandá-la à merda que ela, maternalmente, compreende-os. Na casa portuense não há empregada residente.)

Comentários

Pedro Gonçalves disse…
Ainda deve ser a versão Beta da abordagem ao universo tripeiro.

Não tive o privilégio de ver a coisa, mas imagino imagens aéreas sobre a Casa da Música, Serralves e a Foz.

Auto-recorrência de fina estirpe.

Cheers!
lia disse…
Vi ontem um pouco e confirmo, não há sotaque. Ridículo, no mínimo, mas faz sentido se pensarmos que a outra novela ainda viva da TVI ("Mundo Meu" - o "Ninguém Como Tu" já-jaz no leito da morte) se passa no Algarve e só uma personagem (a do Pedro Górgia) tem sotaque.

Lia, gaiense a viver em Lisboa e boavisteira realmente :-p

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