Seu Jorge

Publicado na Time Out em Outubro de 2010:


Canções com cobertura

Seu Jorge juntou-se ao trio Almaz e entregou mais um álbum de canções alheias, coisa com esqueleto rock chamada… Seu Jorge and Almaz. Umas versões são mais improváveis do que outras. No mês da apresentação no Coliseu, Jorge Manuel Lopes foi ouvir as diferenças entre algumas recriações e os originais e tirou notas

“Errare Humanum Est”
Às mãos de Jorge Ben, este tema de 1972 segue à letra a pergunta-verso repetida “Eram os deuses astronautas?”, construindo um tema denso mas aéreo, onde a voz progressivamente encharcada em eco e a entrada de uma frente unida de violinos encosta o tema ao psicadelismo. Seu Jorge deve ter achado que o tema aguenta bem a compactação (de seis para quatro minutos) e a redução do leque instrumental para as bases do rock. No papel a ideia não é promissora; na prática, isso projecta a voz mais agreste do Jorge mais novo para um nítido primeiro plano.


“The Model”
O monumento ao glamour mecanizado dos Kraftwerk é, sinceramente, a perfeição feita circuitos integrados, mas isso não tem impedido que temerários de origens improváveis se lancem ao tem – os Big Black até o fizeram com muito ruído e uma certa graça em 1987. Desta vez, o esqueleto indie-rock empregue pelos Almaz (isto é, os Nação Zumbi) é demasiado limitado e desinspirado para fazer jus à matéria-prima, ficando novamente nas cordas vocais de Seu Jorge, aqui mais cavernosas, a função de dar algum sentido à recriação.


“Cristina”
Primeiro e improvável triunfo de Seu Jorge. “Cristina” vem no primeiro álbum, homónimo, de Tim Maia, lançado em 1970. Aí, a voz imensa de Maia comanda um breve mas intrépido instante de pop-funk que ainda tresanda a anos 60. É a simplicidade do tema que faz com que a transposição para o novo século aconteça sem sobressaltos – e apesar das grandes diferenças de amplitude e registo vocal entre Maia e Seu Jorge, este aguenta-se com brio.


“Saudosa Bahia”
Delicioso momento de samba levado pelas estruturas da canção ligeira ié-ié dos 60s. Noriel Vilela cantou-o em 1968, e não é difícil encontrar afinidades nos tons graves das vozes de Vilela e de Seu Jorge. Outra cantiga aparentemente simples com direito a adaptação simples, mesmo que mais uma vez ameaçada de terraplanagem pelo rock anémico dos Almaz.


“Everybody Loves the Sunshine”
A sintonia entre o original soul-funk planante de Roy Ayers e a nova versão é total. O que tem a vantagem de não estragar o que estava bem feito e a desvantagem de deixar o ouvinte a perguntar-se sobre a necessidade de repetir uma canção quase sem tirar nem pôr. Ainda assim, é um dos pontos altos de Seu Jorge and Almaz; até dá para passar por cima da pronúncia inglesa de Seu Jorge, que aqui não é muito diferente do nível de uma banda de covers do circuito de casinos português.


“Rock With You”
Não se devia invocar o nome de Michael Jackson em vão, mas esta recriação de um dos diamantes de Off the Wall é tão desenxabida e desengonçada que deixa o ouvinte boquiaberto e com instintos homicidas. Suspeita-se até que o espírito de um bando de universitários americanos ranhosos fixado nos Pavement baixou sobre Seu Jorge e banda. Um momento que será melhor limpar da memória rapidamente – o que não será difícil, dada a insipidez e invisibilidade de uma recriação que não saberia reconhecer o funk mesmo que ele saísse de um bolo de aniversário usando apenas fio dental e óculos de sol fluorescentes.


“Tudo Cabe num Beijo”
Rezam as biografias que Altemar Dutra, que gravou este tema no final dos anos 60, ganhou fama no Brasil e restante América do Sul como rei do bolero. Adequadamente, a sua voz pinga romantismo e projecta grandiosidade. Já a nova recriação é uma das mais astutas e inesperadas de Seu Jorge and Almaz: onde antes havia arrebatamento nasce agora um suave passeio com instrumentação rarefeita, qual canção de bailarico de antanho virada do avesso num estúdio de dub na Jamaica.


“Girl You Move Me”
O original, do colectivo franco-americano Cane and Able, é uma extensa peça de soul psicadélica montada em 1972. Agora vê-se comprimida a dois minutos e pouco e quase despida de vocalização. Uma boa solução.


“Juízo Final”
Nélson Cavaquinho, ilustre sambista carioca, gravou esta sua obra-prima agridoce em 1973, quando já havia passado os 60 anos. A versão que fecha Seu Jorge and Almaz não belisca uma canção que já tem um amplo cortejo de versões, esticando-a até perto dos seis minutos. O embalo do samba, felizmente, mantém-se. A guitarra eléctrica, em convulsões, dá-lhe um ar mais apocalíptico.

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