Air
(Textos publicados em Outubro no Actual do Expresso)
O léxico do amor
Os Air fecharam a porta da casa nova e ficaram a sós com o seu arsenal de maquinaria, conta Nicolas Godin. “Love 2”, o resultado, é mais optimista do que intimista. Texto de Jorge Manuel Lopes
A música dos Air costuma exigir uma quantidade razoável de mão-de-obra. Nos bastidores daquele som denso e imaterial como bancos de nevoeiro é habitual encontrar letristas e cantores convidados, secções de cordas e uma apreciável equipa de outros músicos, todos contribuindo para a elaboração de camadas sonoras que saltam com facilidade o muro que separa a simplicidade quase displicente das construções épicas.
O tom de graciosa modernidade (ou pós-modernidade; depende dos dias e do ponto de vista) que atravessa toda a discografia de Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel em nada sai beliscado de “Love 2”, o sexto álbum dos Air, editado na passada terça-feira; mesmo que, desta vez, a dupla tenha procedido a uma drástica redução dos colaboradores – só o baterista Joey Waronker é que mantém uma presença constante. Um downsizing que, de acordo com Nicolas Godin, está relacionado com a busca dos parâmetros iniciais dos Air: “Quando começámos a fazer música éramos só nós os dois mas, à medida que fomos obtendo cada vez mais sucesso e viajando por todo o mundo, e isso fez com que conhecêssemos uma data de músicos formidáveis; músicos, produtores, engenheiros de som, orquestras… Aprendemos imenso com todas essas pessoas, e ao fim de dez anos sentimos que devíamos voltar a fazer qualquer coisa mais intimista, só nós os dois.”
Este intimismo não é, todavia, uma peça nova que tivesse vindo alterar dramaticamente o som dos Air. Qualquer ouvinte familiarizado com a preciosa produção da dupla francesa não terá ponta de dificuldade em reconhecê-los ao fim de um punhado de minutos de ‘Do the Joy’, a faixa de abertura de “Love 2”, assim prosseguindo até ao derradeiro ‘African Velvet’. É o conforto do retorno a sítios que já se sabem sedutores e confortáveis, mas que ainda conseguem evitar o resvalanço para a rotina. Já o tom específico de “Love 2”, esse começa a ser claramente explicado logo na mencionada ‘Do the Joy’: este é um álbum que transpira optimismo. Godin: “É verdade. Agora sentimos menos pressão, o que pode ter a ver, novamente, com o facto de já andarmos nisto há mais de dez anos. Quando vamos para o estúdio hoje em dia, percebemos que nos deparamos com cada vez menos coisas impossíveis de realizar, deixámos de ter medo de fazê-las.”
“Love 2” é o primeiro disco dos Air concebido e registado no novo estúdio de Nicolas e Jean-Benoît. Um estúdio localizado em Paris e baptizado com um nome singelo: Atlas. Foi para lá que os Air encaminharam a sua vasta colecção de teclados analógicos; objectos mais ou menos vintage e cuja ‘respiração’ é uma marca central da música dos Air. Dito isto, Nicolas Godin faz questão de sublinhar que o grupo não alinha em grandes fetichismos ou fundamentalismos tecnológicos: “Sim, é verdade que temos imenso equipamento, mas nós gostamos de tudo o que seja bom, que soe bem. Seja analógico ou digital. Podemos usar material digital que permita fazer coisas fantásticas, da mesma forma que podemos usar velhos teclados, velhos Moogs, piano, guitarra eléctrica, guitarra ‘a fingir’… Não interessa muito as fontes de onde extraímos os sons, mas é verdade que os teclados analógicos são assombrosos. O som que produzem é corpulento, quente, natural, cheio de vida. Não se trata de nostalgia, mas quando temos objectos assim, tão cool e divertidos, gosto de usá-los.” Pertencerá então Nicolas àquela classe de arqueólogos-internautas que não descola do eBay, sempre alerta para deitar a mão a equipamento vintage exótico? “Não. Prefiro ir a muitas lojas para comprar o meu material, sobretudo quando andamos em digressão noutros países. Hoje em dia, já deixou de ser divertido andar atrás dessas coisas no eBay.”
Para Nicolas Godin, o maior equívoco em que as pessoas incorrem no que diz respeito aos Air (e isto vai soar ligeiramente contraditório em relação ao que atrás foi declarado) é “acharem que somos perfeccionistas. Que somos uns maníacos obcecados. Somos nada disso: inventamos os sons e registamos tudo bastante depressa, não pensamos muito nas coisas, e quando está feito, está feito. Não gostamos de investir demasiado tempo numa canção. Mas quando ouvirem o novo disco, tenho a certeza que vão achar tudo aquilo demorou uma eternidade a ficar aprontado”. Godin aproveita ainda para contradizer o que parecia ser uma outra evidência no universo Air: a de uma discografia onde cada peça obedece a um gesto conceptual bastante rigoroso. “Nada disso. Seguimos sempre o nosso instinto.” Mesmo assim, admite que, quando ele e Jean-Benoît Dunckel se juntam para arquitectar música nova, muitas ideias vão parar ao cesto do lixo.
A digressão europeia de apresentação de “Love 2” só arranca no final de Novembro (e, por enquanto, não contempla passagem pela Península Ibérica). Até lá, Nicolas e Jean-Benoît andarão ocupados com a escrita de música para a banda sonora de “Quartier Lointain”, adaptação francesa da manga nipónica “Harukana Machi-E”, de Jirô Taniguchi. E depois dos sons para juntar a fitas e de outro giro pelos palcos do mundo, para onde vê Nicolas Godin a música dos Air a dirigir-se? “Não sei nem quero saber [risos]! Acho que vou fazendo discos para tentar perceber isso.”
Love 2
Air
EMI
Em “Love 2”, os Air voltam a entrar nas imagens de Sofia Coppola. Não de uma forma literal, como em “The Virgin Suicides”, mas sob a forma de um regresso em espírito a “Lost in Translation”. Estas 12 canções soam como se tivessem sido feitas às quatro da madrugada num bar com vista panorâmica no 45º andar de uma torre state of the art retro-futurista, a separação do mundo exterior reflectida na textura dos temas. “Love 2” é atravessado, como se de espectros se tratassem, pelo ‘som’ dos painéis de cortiça que forram as paredes, dos vidros duplos e dos quilómetros de alcatifa que calafetam este sítio feliz mas sedado, isolando-o daqueloutro que se vê da janela. Um som desumidificado mas de gestos largos e, por vezes, a aproximar-se de novo do rock progressivo segundo os Pink Floyd. Há até momentos no álbum em que a guitarra e a bateria saem do torpor e entram pelo rock de formas pouco escutadas no passado dos Air, mas “Love 2” vale em boa parte pelo catálogo de texturas implícitas ou explícitas. É sedutor porque soporífero, com o seu saxofone fora de horas, a caixa de ritmos a precisar de descanso e as vozes harmoniosas, de um brilho e suavidade pouco humanos.
O léxico do amor
Os Air fecharam a porta da casa nova e ficaram a sós com o seu arsenal de maquinaria, conta Nicolas Godin. “Love 2”, o resultado, é mais optimista do que intimista. Texto de Jorge Manuel Lopes
A música dos Air costuma exigir uma quantidade razoável de mão-de-obra. Nos bastidores daquele som denso e imaterial como bancos de nevoeiro é habitual encontrar letristas e cantores convidados, secções de cordas e uma apreciável equipa de outros músicos, todos contribuindo para a elaboração de camadas sonoras que saltam com facilidade o muro que separa a simplicidade quase displicente das construções épicas.
O tom de graciosa modernidade (ou pós-modernidade; depende dos dias e do ponto de vista) que atravessa toda a discografia de Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel em nada sai beliscado de “Love 2”, o sexto álbum dos Air, editado na passada terça-feira; mesmo que, desta vez, a dupla tenha procedido a uma drástica redução dos colaboradores – só o baterista Joey Waronker é que mantém uma presença constante. Um downsizing que, de acordo com Nicolas Godin, está relacionado com a busca dos parâmetros iniciais dos Air: “Quando começámos a fazer música éramos só nós os dois mas, à medida que fomos obtendo cada vez mais sucesso e viajando por todo o mundo, e isso fez com que conhecêssemos uma data de músicos formidáveis; músicos, produtores, engenheiros de som, orquestras… Aprendemos imenso com todas essas pessoas, e ao fim de dez anos sentimos que devíamos voltar a fazer qualquer coisa mais intimista, só nós os dois.”
Este intimismo não é, todavia, uma peça nova que tivesse vindo alterar dramaticamente o som dos Air. Qualquer ouvinte familiarizado com a preciosa produção da dupla francesa não terá ponta de dificuldade em reconhecê-los ao fim de um punhado de minutos de ‘Do the Joy’, a faixa de abertura de “Love 2”, assim prosseguindo até ao derradeiro ‘African Velvet’. É o conforto do retorno a sítios que já se sabem sedutores e confortáveis, mas que ainda conseguem evitar o resvalanço para a rotina. Já o tom específico de “Love 2”, esse começa a ser claramente explicado logo na mencionada ‘Do the Joy’: este é um álbum que transpira optimismo. Godin: “É verdade. Agora sentimos menos pressão, o que pode ter a ver, novamente, com o facto de já andarmos nisto há mais de dez anos. Quando vamos para o estúdio hoje em dia, percebemos que nos deparamos com cada vez menos coisas impossíveis de realizar, deixámos de ter medo de fazê-las.”
“Love 2” é o primeiro disco dos Air concebido e registado no novo estúdio de Nicolas e Jean-Benoît. Um estúdio localizado em Paris e baptizado com um nome singelo: Atlas. Foi para lá que os Air encaminharam a sua vasta colecção de teclados analógicos; objectos mais ou menos vintage e cuja ‘respiração’ é uma marca central da música dos Air. Dito isto, Nicolas Godin faz questão de sublinhar que o grupo não alinha em grandes fetichismos ou fundamentalismos tecnológicos: “Sim, é verdade que temos imenso equipamento, mas nós gostamos de tudo o que seja bom, que soe bem. Seja analógico ou digital. Podemos usar material digital que permita fazer coisas fantásticas, da mesma forma que podemos usar velhos teclados, velhos Moogs, piano, guitarra eléctrica, guitarra ‘a fingir’… Não interessa muito as fontes de onde extraímos os sons, mas é verdade que os teclados analógicos são assombrosos. O som que produzem é corpulento, quente, natural, cheio de vida. Não se trata de nostalgia, mas quando temos objectos assim, tão cool e divertidos, gosto de usá-los.” Pertencerá então Nicolas àquela classe de arqueólogos-internautas que não descola do eBay, sempre alerta para deitar a mão a equipamento vintage exótico? “Não. Prefiro ir a muitas lojas para comprar o meu material, sobretudo quando andamos em digressão noutros países. Hoje em dia, já deixou de ser divertido andar atrás dessas coisas no eBay.”
Para Nicolas Godin, o maior equívoco em que as pessoas incorrem no que diz respeito aos Air (e isto vai soar ligeiramente contraditório em relação ao que atrás foi declarado) é “acharem que somos perfeccionistas. Que somos uns maníacos obcecados. Somos nada disso: inventamos os sons e registamos tudo bastante depressa, não pensamos muito nas coisas, e quando está feito, está feito. Não gostamos de investir demasiado tempo numa canção. Mas quando ouvirem o novo disco, tenho a certeza que vão achar tudo aquilo demorou uma eternidade a ficar aprontado”. Godin aproveita ainda para contradizer o que parecia ser uma outra evidência no universo Air: a de uma discografia onde cada peça obedece a um gesto conceptual bastante rigoroso. “Nada disso. Seguimos sempre o nosso instinto.” Mesmo assim, admite que, quando ele e Jean-Benoît Dunckel se juntam para arquitectar música nova, muitas ideias vão parar ao cesto do lixo.
A digressão europeia de apresentação de “Love 2” só arranca no final de Novembro (e, por enquanto, não contempla passagem pela Península Ibérica). Até lá, Nicolas e Jean-Benoît andarão ocupados com a escrita de música para a banda sonora de “Quartier Lointain”, adaptação francesa da manga nipónica “Harukana Machi-E”, de Jirô Taniguchi. E depois dos sons para juntar a fitas e de outro giro pelos palcos do mundo, para onde vê Nicolas Godin a música dos Air a dirigir-se? “Não sei nem quero saber [risos]! Acho que vou fazendo discos para tentar perceber isso.”
Love 2
Air
EMI
Em “Love 2”, os Air voltam a entrar nas imagens de Sofia Coppola. Não de uma forma literal, como em “The Virgin Suicides”, mas sob a forma de um regresso em espírito a “Lost in Translation”. Estas 12 canções soam como se tivessem sido feitas às quatro da madrugada num bar com vista panorâmica no 45º andar de uma torre state of the art retro-futurista, a separação do mundo exterior reflectida na textura dos temas. “Love 2” é atravessado, como se de espectros se tratassem, pelo ‘som’ dos painéis de cortiça que forram as paredes, dos vidros duplos e dos quilómetros de alcatifa que calafetam este sítio feliz mas sedado, isolando-o daqueloutro que se vê da janela. Um som desumidificado mas de gestos largos e, por vezes, a aproximar-se de novo do rock progressivo segundo os Pink Floyd. Há até momentos no álbum em que a guitarra e a bateria saem do torpor e entram pelo rock de formas pouco escutadas no passado dos Air, mas “Love 2” vale em boa parte pelo catálogo de texturas implícitas ou explícitas. É sedutor porque soporífero, com o seu saxofone fora de horas, a caixa de ritmos a precisar de descanso e as vozes harmoniosas, de um brilho e suavidade pouco humanos.
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