Mundo

Entrevista inédita com Mundo dos Dealema, realizada em Julho de 2005 a propósito da edição da compilação Lado Obscuro e das noites Nova Gaia Hip Hop.

A Palavra É a Arma?
Das sessões Nova Gaia Hip Hop nasceu a compilação Lado Obscuro, onde MUNDO dá o microfone a uma nova geração de hip-hop português. Texto: Jorge Manuel Lopes

Além de integrar os Dealema (veteranos à escala temporal do hip-hop português, ainda frescos no departamento discográfico – um único álbum, homónimo, editado em 2003), Mundo organiza desde 1999 as noites mensais Nova Gaia Hip Hop, com poiso actual no Hard Club. As sessões Nova Gaia têm uma importância incontornável na expansão da cultura hip-hop no Grande Porto (limitações económicas obrigam a que as visitas de projectos de Lisboa ou do Algarve sejam pouco mais do que pontuais), não apenas abrindo o palco e o PA a uma mistura de DJs, MCs e bandas recém-nascidas e projectos reconhecidos no meio, como também dando tempo de antena ao breakdance e, pelo menos em suporte vídeo, ao graffiti.
A influência e persistência da Nova Gaia Hip Hop fazem com que, na prática, para o bem e para o mal, quase todo o hip-hop feito na Área Metropolitana do Porto exista à sua sombra. Cada sessão funciona como festa e ponto de encontro comunitário, com um público em constante renovação geracional e num volume de afluência que serve simultaneamente de testemunho dos anos de militante gestação underground do movimento (toda a segunda metade da década de 1990) e de reflexo do domínio que a vaga urbana enraizada no hip-hop exerce actualmente sobre o imaginário da cultura pop. É através da relação de atracção e repulsa entre estas duas tendências que a Nova Gaia tem navegado sem perder a identidade.
O rol de projectos que já passou pelas sessões Nova Gaia Hip Hop forneceu as bases para a compilação Lado Obscuro, de edição recente. Mundo escolheu as bandas e, sempre que necessário (e, no caso, foi muitas vezes necessário), providenciou-lhes local para gravação e produtor. Em Lado Obscuro podem ouvir-se faixas de projectos como IRS, Falco, Rey, Rato + Ana (o primeiro ex-, a segunda ainda dos LF Cool), UNA, Barrako 27, Processo, Código Anónimo, Outro Auge, Ruça, Noir, Chaz, Zuna, Gatos do Beco, Shingaii e, como que dando uma benévola caução superior, o também Dealema Fuse.
Mundo anda preocupado com o que chama de hip-hop de plástico. Lado Obscuro terminado, concentra-se agora na finalização do disco de estreia a solo, para lançamento ainda este ano, e já anda às voltas com o próximo álbum dos Dealema, a sair em 2006 – a tempo de comemorar os 10 anos de vida dos maquinistas do Expresso do Submundo.

O que é que te motivou a juntar todos estes nomes para o Lado Obscuro?
O Lado Obscuro foi um bocado fruto das Nova Gaia Hip Hop Sessions e de irmos conhecendo algumas bandas do underground portuense. Banda após banda, fomos perguntando se estavam interessadas em participar numa compilação de hip-hop que estávamos a fazer só com bandas emergentes, e o pessoal aderiu sem nenhuma oposição. Nasceu espontaneamente: o pessoal ia ao 2º Piso, levava alguns instrumentais, foram gravando e eu fui juntando-os.

Ou seja, quem era convidado a actuar nas Hip Hop Sessions também ficava automaticamente convidado para gravar algo no 2º Piso.
Sim, mais ou menos. Gostava de ter feito uma coisa mais abrangente só que, financeiramente, não podia comportar certos custos. Gostava de ter trazido mais pessoas de fora [do Grande Porto]. Neste caso só tenho uma pessoa do Algarve, mas pretendia ter mais pessoas a nível nacional. Futuramente, se tiver meios para isso, o Lado Obscuro terá inúmeras bandas emergentes de todo o país.

Quase todas as 20 faixas do álbum foram registadas no 2º Piso. Como é que o teu estúdio funciona?
O 2º Piso é, basicamente, o meu quarto. É o meu pequeno estúdio, onde eu gravo as coisas… Outro ponto importante nesta compilação é que muitas das bandas não tinham material para fazer as gravações, e o meu papel neste disco foi um bocado… Primeiro, não cantei, porque não queria envolver-me dessa maneira; depois, produzi uma ou outra faixa [oito em 20], mas de resto deixei tudo ao cuidado das pessoas, porque o que queria mesmo era só fazer o registo e não meter muito a mão. Mas acabei por ter que pôr, porque algumas pessoas não tinham meios de produção. De resto, tentei que fosse o mais fiel possível às pessoas, e que tivesse os produtores de cada banda. Mas acho que foi uma boa experiência para eles. Desde a altura em que gravámos isto, no ano passado, até agora, muitos deles já evoluíram bastante.

A ideia de fazer esta compilação nasceu independentemente de poder vir a usufruir de uma distribuição generalizada (no caso, da Zona Música)?
Sim. Inicialmente, o Lado Obscuro íamos fazê-lo nós, da manufactura à distribuição, fosse de que maneira fosse, à mão ou ao pé. Depois, surgiu a possibilidade de fazer uma distribuição maior, o que em certa parte era bom, porque o intuito da colectânea era promover estas bandas novas. Com uma distribuidora conseguiríamos chegar a superfícies que, à mão, não conseguiríamos chegar. Nesse aspecto a Zona Música foi um bom contacto, porque o disco está em todo o lado, desde a Worten à Fnac. No meio do Alentejo podes adquirir o Lado Obscuro. Se a gente o vendesse à mão, provavelmente isso não seria possível.

Há uma renovação geracional no hip-hop feito em Portugal, ou os nomes que vão surgindo em compilações e em discos por conta própria são, basicamente, projectos com vários anos de rodagem e que só agora têm oportunidade de chegar a um público mais vasto?
Acho que é muito por aí [segunda hipótese]. Sem pôr de parte ninguém, creio que há no Porto uma certa dificuldade a nível de infra-estruturas para poderes pôr o teu disco cá fora. Para pôr o Lado Obscuro na rua tive que me deslocar a Lisboa, porque está tudo em Lisboa. Nós, cá em cima no Porto, temos mesmo de nos juntar e criar as nossas próprias infra-estruturas. Não temos distribuidoras, não temos editoras... Temos algumas redacções de jornais, o que já é uma boa ajuda mas, de resto, temos sempre de sair da nossa cidade para conseguirmos alguma coisa. Esse ainda é um problema grave no Porto mas que tem de ser combatido, porque estas bandas novas vão precisar todas desse apoio. Dantes [o hip-hop local] era um universo mais pequeno, era possível realizar certas coisas. Agora já começa a ser maior, e tem que haver mais infra-estruturas, senão metade dessas bandas não vai chegar a lado nenhum. É mau. As pessoas acabam por desistir porque sentem-se… limitadas, não podem ir mais [além] do que aquele risco.

Notas, nas bandas mais novas que se sentiram motivadas a formar-se porque frequentavam, por exemplo, as Hip Hop Sessions, grandes diferenças em relação à geração de meados dos anos 1990 – como os Dealema – em termos de visão do hip-hop e do mundo exterior em geral?
É diferente em relação à década de 90 porque o hip-hop nessa altura estava a aparecer [em Portugal] e bandas como os Mind da Gap e MatoZoo, que foram essenciais no início, eram obrigadas a ter um certo tipo de mentalidade e disciplina. Todos juntos, tivemos que fazer umas bases daquilo que iria ser o hip-hop. Hoje em dia, quando te inseres no hip-hop, já sabes que existem não sei quantas bandas, não sei quantos DJs, por aí adiante. Nós não tínhamos nada disso. Não tínhamos para quem olhar e dizer, «iá, este é o pessoal do hip-hop, eles fizeram isto». Nós tivemos que trabalhar, basicamente, a partir do zero. Independentemente de ser bom ou mau, fomos trabalhando. Em termos de atitude, isso marca logo um certo tipo de diferença.

E foi necessário gerir a coisa durante muitos anos, mesmo quando não havia um interesse público que ultrapassasse o underground.
Já passaram mais ou menos 10 anos desde que começou este circuito de discos. As bandas do início, como os Mind da Gap, Dealema, MatoZoo… esse tipo de pessoas foi muito importante no Porto, e o que vês agora é um bocado fruto disso. Há uns que podem não gostar disto ou daquilo, mas têm que concordar que o hip-hop [no Porto] começou aí, essas são as raízes. E se as pessoas agora conseguirem manter esse espírito que a gente tinha no início, o hip-hop pode evoluir. Senão vai para aquilo em que já está a cair, o hip-hop de plástico, de televisão, de jóias, carros e mulheres, que não tem nada a ver com o hip-hop. Isso são coisas materiais que se distanciam do que é, realmente, o espírito da música.

No Porto, onde se encontra esse hip-hop de plástico?
Aqui se calhar não há assim tanto. Como te estava a dizer, não há aqui infra-estruturas que possam aliciar algumas bandas a fazer esse tipo de hip-hop. Mas de há 10 anos para cá já há muito mais hip-hop nessa vertente. Agora, se me perguntarem se é bom ou mau… A mim não aquece nem arrefece. Desde que não interfira no meu campo, tudo bem. Acho que deve haver um pouco de tudo, mas a partir do momento em que se quer transformar o hip-hop segundo uma imagem que não é a do hip-hop, as pessoas que estão nisto há mais anos começam a sentir-se prejudicadas. Porque nós trabalhámos para uma cultura educativa, de intervenção (seja ela qual for: política, escolar, na natureza…). Hoje em dia não se liga muito a isso. Liga-se a fazer um refrão mais bonito, fazer uma letra mais simples para as pessoas devorarem logo, e isso começa a deturpar a essência do hip-hop, que está na mensagem, na inteligência da palavra. Porque a palavra é a arma, mas neste momento se calhar já não é tanto. Há bandas que continuam a manter esse espírito, e sei que vão ter 50 anos e continuar a fazer isso, e há outras que o começam a deturpar. Não tenho nada contra quem faz hip-hop, seja pesado, seja de festa, acho que cada um deve exprimir-se da maneira que sente. Só acho que não se deve deturpar as coisas e dizer, «isto é o hip-hop, e aquilo não é». Porque quem acompanhou o hip-hop desde 1978 ou 79… Eu nasci em 78 mas interesso-me por tudo o que veio antes, e isso é uma coisa que falta aos jovens, interessarem-se pela história, saberem onde e como é que começou, porque é que o DJ faz scratch, porque é que o ritmo do hip-hop tem aquela velocidade e é construído daquela maneira. Hoje as pessoas não ligam muito a isso. Ligam, se calhar, a ver o não sei quantos na revista, a ver o vídeoclip de não sei o quê… E eu continuo nessa mentalidade de ser curioso e querer conhecer, e sei que as pessoas com quem trabalho, e que convidei para esta compilação, também têm essa mentalidade. São jovens mas querem saber mais do hip-hop, não querem estar nisto só porque é uma moda e vão ser conhecidos. Se me perguntares quanto é que acho que vale o disco, digo-te que não é um disco 100%, porque é um disco de novos talentos, e quem o ouvir tem que ouvi-lo como tal, da mesma forma que ouviu os Dealema em 1996 no Expresso do Submundo, com um som super-mau. Isto é uma compilação para conhecer as bandas todas que estão aí, os IRS, os UNA, os Gatos do Beco, o Falco… É tudo pessoas que, daqui a cinco ou seis anos, vão estar a interpretar o papel que nós e outros mais hoje em dia interpretam, se calhar também a puxar outras pessoas.

As bandas mais novas do Lado Obscuro são tão políticas como as de há 10 anos? A forma como expressam esse tipo de preocupação alterou-se? Diluiu-se?
Nesta compilação, tirando o Fuse, que é a pessoa mais velha e mais ou menos instituída, é quase tudo pessoal novo (embora também haja o Rey, que já está há alguns anos nisto, e o Chaz), e [a expressão política] tem a ver com a idade. Também já tive 16 anos, e com 16 anos as minhas preocupações eram diferentes das que tenho hoje em dia. O que escrevíamos em 96 não escrevemos agora – escrevemos de outra maneira, tentando que seja mais inteligente e trabalhado. E como este disco gira muito em volta de adolescentes, tem um tipo de mensagem diferente do que se tivessem todos 25 anos. Neste caso, são músicas muito ligadas ao bairro, à cidade, às pessoas, e não têm tanto a vertente de que falas. Mas se calhar vamos ouvir estes MCs todos daqui a seis anos e vai ser totalmente diferente. Este pessoal pode evoluir ainda mais [do que nós], porque são pessoas que já têm outra escola de hip-hop e uma margem de progressão muito maior.

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