Kanye West 2
Versão integral de texto originalmente publicado em Outubro de 2005 no Blitz. Partes deixadas de fora da versão impressa à época foram reaproveitadas para a prosa publicada no Blitz de hoje - incluindo o título original do texto abaixo reproduzido - sim, este foi o «Brilhante Diamante» original, substituído por...
Kanye West a Presidente
Ao segundo álbum, KANYE WEST constrói a segunda obra-prima. Late Registration tinge o hip-hop mainstream com discreta mas urgente inquietação política. O furacão Katrina chegou depois. O ex-braço direito de Jay-Z é o mais importante criador da pop negra americana. Texto: Jorge Manuel Lopes
Há uma cronologia traçada por Sasha Frere-Jones numa edição de Agosto da revista semanal americana The New Yorker que sublinha as interessantes e invulgares mutações que «Diamonds from Sierra Leone», o single que anunciou a chegada do álbum Late Registration, sofreu em termos de conteúdo lírico desde o seu primeiro lançamento em Maio.
Lembra Frere-Jones que a primeira versão deste tema, impulsionado por um generoso sample de «Diamonds Are Forever», sucesso cantado por Shirley Bassey para o filme homónimo da saga James Bond em 1971, partia da decepção de Kanye West por não ter saído premiado da cerimónia do ano passado dos American Music Awards. Chegado o momento de realizar o respectivo teledisco, West tomara conhecimento do novelo de violência, exploração infantil e corrupção política associadas ao comércio de diamantes em África, introduzindo esses temas no centro da narrativa do vídeo e terminando-o com um apelo aos espectadores para não adquirir pedras preciosas obtidas em zonas de conflito político. Em Junho, Kanye West remistura «…Sierra Leone» para incluir novos versos que fixam a mudança de perspectiva da canção – do fundador abalo ao ego por não ver o trabalho reconhecido por parte da indústria para a súbita e perturbante revelação do circuito frequentemente selvático pelo qual passam alguns dos símbolos maiores de ostentação material do sucesso no universo musical urbano (outra forma de dizer «negro», ou de base cultural, social e demográfica negra).
Estas duas versões estão incluídas no alinhamento de Late Registration, a segunda obra-prima de Kanye West em outras tantas tentativas. A original chega no fim em forma de tema-bónus. A remistura inclui um breve cameo de Jay-Z, provável ex-rapper, actual homem forte da editora Def Jam, a personagem mais poderosa do hip-hop americano desde, pelo menos, o início desta década. Foi ao serviço de Jay-Z que Kanye West começou a mostrar o que valia como compositor e produtor, através de múltiplas encomendas para o elenco da editora Roc-A-Fella – com o pico no seu contributo para o álbum central de Jay-Z, The Blueprint, editado em 2001.
Por desígnio ou acidente, o «processo» «Diamonds from Sierra Leone» é sintomático da impossibilidade de que o mais significativo fornecedor de vitalidade (= imaginação + invenção + inspiração) à música popular de há uma década para cá – isto é, a nebulosa mainstream onde hip-hop e mutações futuristas de r&b, soul e funk se envolvem em actividades promíscuas – pudesse continuar por muito mais tempo a ignorar as manchas cinzentas que se multiplicam no mundo exterior às suas torres de roupas caras/ champanhe/ limousines/ silicone/ músculos/ armas/ jactos particulares/ joalharia (o gueto, entretanto transformado em fundo cinematográfico para um glamour violento mais ou menos simbólico, já não conta para este campeonato).
O degrau seguinte na escada política de Kanye West, que nasceu há 28 anos em Chicago (a mãe, agora reformada, foi professora de Inglês), está a ter um impacto bastante superior. Durante uma emissão televisiva da cadeia americana NBC a 2 de Setembro, com o propósito de angariar fundos para as vítimas do furacão Katrina, West descartou a homília oca, beata e pseudo-consensual de circunstância projectada no teletexto, aproveitando o poder e a imprevisibilidade conferidos por uma transmissão em directo para dar uma função subversiva a um meio de comunicação cada vez mais (i)moral e economicamente blindado. Em poucas dezenas de segundos, Kanye protestou contra a incompetência generalizada no auxílio aos habitantes de Nova Orleães sitiados pelas cheias, associando-a à cor da pele (negra) e ao estatuto social (maioritariamente de classe baixa) das vítimas, conseguindo ainda lançar um eloquente «George Bush doesn’t care about black people» enquanto a realização do programa lhe cortava o tempo de antena. Parece coisa pouca e branda, mas não é.
Por sua vez, esta notável ruptura da ordem política-televisiva já se infiltrou no imaginário e na produção artística. O colectivo de hip-hop The Legendary K.O. pegou no esqueleto de «Gold Digger», o novo single de Late Registration dominado por um sample de Ray Charles e pela participação vocal de Jamie Foxx (que, recorde-se, interpretou o papel de Charles no filme Ray), e criou uma espécie de mash-up com o título auto-explicativo «George Bush Doesn’t Care About Black People». Ao tema foi entretanto acrescentado um teledisco num idêntico idioma de colagem da autoria de The Black Lantern, montando e modificando pedaços do teledisco de «Gold Digger» e de reportagens televisivas da tragédia em Nova Orleães – música e imagens podem ser testemunhadas em www.theblacklantern.com.
Os acontecimentos em redor de Kanye West lembram como a música popular adquire outro fôlego, outra importância quando abandona por instantes o estado discursivamente anémico onde indústria e ouvintes de som de fundo gostam de a manter, e suja as mãos na realidade. Assistir à surpreendente erupção televisiva de West e escutar uma mão cheia de canções de álbuns tão bem sucedidos como The College Dropout (o seu álbum de estreia, lançado em 2004, três milhões de cópias vendidas, um trio de Grammys) e Late Registration são formas de a pop se (e nos) lembrar, mesmo que discretamente, mesmo que em constante bulha com o ego, que tem o dever de também ser política.
Late Registration vem embrulhado num enredo cómico que, tal como todas as imagens do CD, remetem de novo para o imaginário universitário. A política de samplagem permanece literal, directa, agora mais intensa, mais encharcada de outros sons, conseguindo o prodígio alquímico de a facilidade perceptiva do reconhecimento dos samples não se tornar ruído no contínuo pop. A contribuição de Jon Brion na produção e nos arranjos orquestrais é soberba. Há canções mágicas que habitam um lugar indefinível – mas não muito distante dos Outkast de Love Below – na doce e íntima salganhada sónica («Heard ‘Em Say», com Adam Levine dos Maroon 5; «Roses»; «Addiction»; «Celebration»), minimalismo dançante sulista e infernal («Gold Digger»), pompa celestial agridoce («Diamonds from Sierra Leone»; o incrível «We Major», com Nas e Really Doe).
Kanye West, que sucede a Timbaland e aos Neptunes em importância, omnipresença e talento visionário na linha de montagem urbana, é também, segundo a revista Time, uma das cem pessoas mais influentes no mundo em 2005. Kanye para Presidente? Porque não?
Kanye West
Late Registration
Roc-A-Fella/Universal
Kanye West a Presidente
Ao segundo álbum, KANYE WEST constrói a segunda obra-prima. Late Registration tinge o hip-hop mainstream com discreta mas urgente inquietação política. O furacão Katrina chegou depois. O ex-braço direito de Jay-Z é o mais importante criador da pop negra americana. Texto: Jorge Manuel Lopes
Há uma cronologia traçada por Sasha Frere-Jones numa edição de Agosto da revista semanal americana The New Yorker que sublinha as interessantes e invulgares mutações que «Diamonds from Sierra Leone», o single que anunciou a chegada do álbum Late Registration, sofreu em termos de conteúdo lírico desde o seu primeiro lançamento em Maio.
Lembra Frere-Jones que a primeira versão deste tema, impulsionado por um generoso sample de «Diamonds Are Forever», sucesso cantado por Shirley Bassey para o filme homónimo da saga James Bond em 1971, partia da decepção de Kanye West por não ter saído premiado da cerimónia do ano passado dos American Music Awards. Chegado o momento de realizar o respectivo teledisco, West tomara conhecimento do novelo de violência, exploração infantil e corrupção política associadas ao comércio de diamantes em África, introduzindo esses temas no centro da narrativa do vídeo e terminando-o com um apelo aos espectadores para não adquirir pedras preciosas obtidas em zonas de conflito político. Em Junho, Kanye West remistura «…Sierra Leone» para incluir novos versos que fixam a mudança de perspectiva da canção – do fundador abalo ao ego por não ver o trabalho reconhecido por parte da indústria para a súbita e perturbante revelação do circuito frequentemente selvático pelo qual passam alguns dos símbolos maiores de ostentação material do sucesso no universo musical urbano (outra forma de dizer «negro», ou de base cultural, social e demográfica negra).
Estas duas versões estão incluídas no alinhamento de Late Registration, a segunda obra-prima de Kanye West em outras tantas tentativas. A original chega no fim em forma de tema-bónus. A remistura inclui um breve cameo de Jay-Z, provável ex-rapper, actual homem forte da editora Def Jam, a personagem mais poderosa do hip-hop americano desde, pelo menos, o início desta década. Foi ao serviço de Jay-Z que Kanye West começou a mostrar o que valia como compositor e produtor, através de múltiplas encomendas para o elenco da editora Roc-A-Fella – com o pico no seu contributo para o álbum central de Jay-Z, The Blueprint, editado em 2001.
Por desígnio ou acidente, o «processo» «Diamonds from Sierra Leone» é sintomático da impossibilidade de que o mais significativo fornecedor de vitalidade (= imaginação + invenção + inspiração) à música popular de há uma década para cá – isto é, a nebulosa mainstream onde hip-hop e mutações futuristas de r&b, soul e funk se envolvem em actividades promíscuas – pudesse continuar por muito mais tempo a ignorar as manchas cinzentas que se multiplicam no mundo exterior às suas torres de roupas caras/ champanhe/ limousines/ silicone/ músculos/ armas/ jactos particulares/ joalharia (o gueto, entretanto transformado em fundo cinematográfico para um glamour violento mais ou menos simbólico, já não conta para este campeonato).
O degrau seguinte na escada política de Kanye West, que nasceu há 28 anos em Chicago (a mãe, agora reformada, foi professora de Inglês), está a ter um impacto bastante superior. Durante uma emissão televisiva da cadeia americana NBC a 2 de Setembro, com o propósito de angariar fundos para as vítimas do furacão Katrina, West descartou a homília oca, beata e pseudo-consensual de circunstância projectada no teletexto, aproveitando o poder e a imprevisibilidade conferidos por uma transmissão em directo para dar uma função subversiva a um meio de comunicação cada vez mais (i)moral e economicamente blindado. Em poucas dezenas de segundos, Kanye protestou contra a incompetência generalizada no auxílio aos habitantes de Nova Orleães sitiados pelas cheias, associando-a à cor da pele (negra) e ao estatuto social (maioritariamente de classe baixa) das vítimas, conseguindo ainda lançar um eloquente «George Bush doesn’t care about black people» enquanto a realização do programa lhe cortava o tempo de antena. Parece coisa pouca e branda, mas não é.
Por sua vez, esta notável ruptura da ordem política-televisiva já se infiltrou no imaginário e na produção artística. O colectivo de hip-hop The Legendary K.O. pegou no esqueleto de «Gold Digger», o novo single de Late Registration dominado por um sample de Ray Charles e pela participação vocal de Jamie Foxx (que, recorde-se, interpretou o papel de Charles no filme Ray), e criou uma espécie de mash-up com o título auto-explicativo «George Bush Doesn’t Care About Black People». Ao tema foi entretanto acrescentado um teledisco num idêntico idioma de colagem da autoria de The Black Lantern, montando e modificando pedaços do teledisco de «Gold Digger» e de reportagens televisivas da tragédia em Nova Orleães – música e imagens podem ser testemunhadas em www.theblacklantern.com.
Os acontecimentos em redor de Kanye West lembram como a música popular adquire outro fôlego, outra importância quando abandona por instantes o estado discursivamente anémico onde indústria e ouvintes de som de fundo gostam de a manter, e suja as mãos na realidade. Assistir à surpreendente erupção televisiva de West e escutar uma mão cheia de canções de álbuns tão bem sucedidos como The College Dropout (o seu álbum de estreia, lançado em 2004, três milhões de cópias vendidas, um trio de Grammys) e Late Registration são formas de a pop se (e nos) lembrar, mesmo que discretamente, mesmo que em constante bulha com o ego, que tem o dever de também ser política.
Late Registration vem embrulhado num enredo cómico que, tal como todas as imagens do CD, remetem de novo para o imaginário universitário. A política de samplagem permanece literal, directa, agora mais intensa, mais encharcada de outros sons, conseguindo o prodígio alquímico de a facilidade perceptiva do reconhecimento dos samples não se tornar ruído no contínuo pop. A contribuição de Jon Brion na produção e nos arranjos orquestrais é soberba. Há canções mágicas que habitam um lugar indefinível – mas não muito distante dos Outkast de Love Below – na doce e íntima salganhada sónica («Heard ‘Em Say», com Adam Levine dos Maroon 5; «Roses»; «Addiction»; «Celebration»), minimalismo dançante sulista e infernal («Gold Digger»), pompa celestial agridoce («Diamonds from Sierra Leone»; o incrível «We Major», com Nas e Really Doe).
Kanye West, que sucede a Timbaland e aos Neptunes em importância, omnipresença e talento visionário na linha de montagem urbana, é também, segundo a revista Time, uma das cem pessoas mais influentes no mundo em 2005. Kanye para Presidente? Porque não?
Kanye West
Late Registration
Roc-A-Fella/Universal
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