P.Y.T. (PRETTY YOUNG THING)
(Artigo publicado no Actual do Expresso de 4 de Julho)
P.Y.T. (PRETTY YOUNG THING)
Michael Jackson conquistou o mundo com canções funk-pop e passos de dança mais leves do que o ar. A sua morte é o princípio do fim da geração MTV?
Esta história inicia-se a 23 de Julho de 1968. Um clip colocado no YouTube mostra uma audição dos Jackson 5 para a Motown onde o grupo toca uma versão de ‘I Got the Feelin’’ de James Brown. A audição convenceu Berry Gordy a contratar o quinteto de irmãos que já começava a dar nas vistas na sua cidade de Gary, à porta de Chicago, tocando intensivamente em bares de strip e nas salas do circuito chitlin’ (os poisos mais seguros para músicos negros no leste e sul dos EUA). O autor da filmagem ignora em absoluto os quatro rapazes alinhados em segundo plano, às voltas com os instrumentos, apostando tudo no miúdo de nove anos que canta e dança com a fluidez e confiança daqueles que, nas palavras imortais das Sisters Sledge, se encontram ‘lost in music’. Um metro e meio de gente compenetrado na entrega de uma versão mais esguia e menos suada dos movimentos e dos tiques vocais do padrinho da soul. Uma performance magnética de uma criança que parece combinar talento inato com uma rodagem precoce e que, já perto dos três minutos de actuação, pisca o olho ao futuro ondulando as pernas como se ensaiasse o moonwalk. Do espírito do padrinho da soul começava a desprender-se o futuro rei da pop.
O Michael Jackson que faleceu a 25 de Junho em Los Angeles, vítima de paragem cardíaca, foi uma estrela precoce. Foi alvo de violência física e emocional pelo pai-maestro-manager Joseph Jackson. Ingressou, com quatro dos oito irmãos, numa etiqueta discográfica, a Motown, gerida por Berry Gordy como qualquer coisa entre uma fábrica, um quartel e uma família, e que em troca derramou os hits que fizeram da música soul música pop. Michael Jackson foi o astro mais imponente que a canção popular viu nascer nos últimos 40 anos, mas para o ser teve que passar ao largo de qualquer semelhança de normalidade. Como se não bastasse as famílias (a de sangue e a editorial) destemperadas, viu-se estrela aos dez anos com ‘I Want You Back’, levando-lhe as últimas hipóteses de uma infância e adolescência parecidas com as das outras pessoas. Em declarações no polémico documentário “Living With Michael Jackson”, produção de 2003 do jornalista britânico Martin Bashir (Michael achou o programa tendencioso e negativo para a sua pessoa; seguiram-se acções em tribunal e um contra-documentário com a versão do cantor), ele recorda com embaraço as digressões dos primeiros tempos em que um irmão (Michael não diz qual) com quem partilhava o quarto de hotel e a cama levava companhia feminina de ocasião e obrigava o miúdo a jurar que não abriria os olhos enquanto durasse a rebaldaria entre lençóis mesmo ao seu lado. Nos anos 70 ele punha os corações de adolescentes a bater mais depressa mas a sua própria relação com as raparigas era uma atrapalhação – no mesmo documentário, ele conta como aos 17 anos foi parar ao quarto da actriz Tatum O’Neil (ela tinha 12) e ficou quase em pânico quando ela tentou seduzi-lo (Tatum O’Neil tem uma versão diferente da história: os avanços foram mútuos, assim como a confusão e o desconforto).
Ao fazer da música soul música pop, a Motown acabava por demarcar concorrentes menos óbvios para Michael e os restantes Jackson 5. Até saírem da editora de Detroit em 1975, os Jacksons mediram forças nas tabelas de vendas com outra família musical de colossal sucesso, os Osmonds, e as marcas deixadas pela competição eram tão profundas que ainda tinham eco em 1981. Em Abril desse ano, o semanário britânico NME entrevistou os Jacksons em Los Angeles, e entre os assuntos a evitar pela imprensa, prevenia um funcionário da editora da banda, estavam os Osmonds, que nessa altura já nem incomodavam os tops (o outro tópico interdito era a astrologia, por contra a religião grupo – Testemunhas de Jeová). O mesmo funcionário chama a atenção para eventuais comportamentos mais exóticos de Michael: “Ele pode parecer estranho aos olhos das pessoas que não o conheçam. Por exemplo, pode acontecer que, quando lhe colocares uma questão, ele necessite que um dos seus irmãos – geralmente a irmã Janet [então com 14 anos] – a segrede ao seu ouvido. Ele pode dar a impressão de estar nas nuvens mas continua presente – tem apenas a ver com a sua maneira e ser. Ele gosta que alguém da família lhe explique as perguntas antes de responder. Penso que é uma questão de confiança.”
Foi com “Thriller”, lançado em Novembro de 1982, que a indústria musical ganhou o seu equivalente a “Tubarão”. Se o filme de 1975 de Steven Spielberg marca o início da era dos blockbusters no cinema, “Thriller” é o tiro de partida temporal a partir do qual surgirá a esmagadora maioria dos discos mais vendidos de sempre. A diferença em relação ao passado recente era abissal. No site Salon, o jornalista americano Michaelangelo Matos lembra como “há 30 anos, a indústria discográfica quase que sucumbia graças ao excesso de gastos alimentados a cocaína e à ressaca do disco-sound. O arranque da MTV a 21 de Novembro de 1981 ajudou a inverter a situação fomentando um ressurgimento do top 40 que fez dos meados dos anos 80 o melhor período para as rádios de sucessos desde os anos 60 ou mesmo, defendo eu, de sempre. Mas “Thriller” teve muito mais a ver com essa mudança”.
Como é que se vendem 109 milhões de exemplares de um álbum em todo o mundo? Sem desprezar o efeito bola de neve do qual toda a fama em grande escala depende, “Thriller” é um disco para toda a família na sua alternância entre pop-funk dançável e faixas midtempo, sobre o qual paira quase sempre o olhar aberto, ou ‘desarmado’, associado à infância, mesmo que tal atitude soe, a espaços, inverosímil (mais um ponto de contacto com parte importante da cinematografia de Spielberg). É, porventura, o mesmo ‘arrested development’ de quem tentou compensar a ausência de uma infância ‘normal’ vivendo o resto dos seus dias em evocação desse tempo – para que outra coisa serviria o seu rancho Neverland, criado em 1988 e no qual Jackson instalou divertimentos com que miúdos de dez ano sonham (jardim zoológico, montanha russa, carrinhos de choque)?
“Thriller” tem momentos de um modernismo de cortar a respiração, sobretudo em ‘Billie Jean’, e os passos de dança de Michael Jackson são mais leves do que o ar, mas é no disco anterior que ele se ouve em estado de graça. “Off the Wall” saiu em Agosto de 1979, chegou aos 20 milhões de exemplares despachados das lojas e contém as obras-primas ‘Don’t Stop ‘Til You Get Enough’ e ‘Rock With You’. Nas palavras do crítico inglês Mark Fisher, esta é uma obra “ainda dominada pela febre de sábado à noite, delirante com todas as promessas doces como o Verão do disco-sound. Aqui [o produtor] Quincy Jones e Jackson construíram uma suite de canções que fez em relação à cultura negra de dança do final dos anos 70 o mesmo que as novelas e histórias de Scott Fitzgerald fizeram em relação a um momento americano mais recuado no tempo, mais branco e endinheirado: elas moldaram as frágeis evanescências da juventude da dança em belos mitos, ornamentados com fabulosos anseios que essas canções não podiam moderar nem esgotar”.
O que se ouviu e viu com “Off the Wall” e “Thriller” estabeleceu o melhor e mais colossalmente influente Michael Jackson. A partir de meados dos anos 1980, aquilo que o tornou incomparável pelas melhores razões começou a perder terreno para um universo onde cada excentricidade e cada passo da sua vida incham até sufocarem a arte, o que o tornava especial. A discografia, espaçada e de qualidade acidentada, assinala um disco decente (“Bad”, de 1987) e três registos (“Dangerous”, “HIStory” e “Invincible”, de 91, 95 e 2001) onde um punhado de pérolas espreita entre batidas datadas e baladas diabéticas. Michael Jackson entra num processo de lenta mas segura liquefacção – na música, na aparência física, na memória. Os últimos 20 anos foram os anos das cirurgias plásticas não quantificadas, das doenças, dos três filhos e do próprio Michael ocultados por máscaras, das suspeitas de abuso de menores resolvidas fora do tribunal, das dívidas, do casamento meteórico com Lisa Marie Presley, da dependência de analgésicos. A morte encontrou-o aos 50 anos: um ciborgue despigmentado que, na volta, ainda acreditava em Peter Pan. Estava prestes a iniciar uma temporada de 50 espectáculos na arena O2, em Londres, que o manteriam ocupado até Março de 2010. Parecia um regresso a valer.
“No mundo lá fora, muito para lá da Europa ocidental e dos Estados Unidos, os territórios que gostamos de pensar como sendo o mundo conhecido em termos de ‘beat music’, ele [Michael Jackson] foi o inventor da música pop e “Thriller” o Ano Zero”, diz David Hepworth, proprietário da revista britânica The Word. “Há alguns anos, numa localidade no interior da Etiópia, tive de explicar a um homem com estudos quem tinha sido Elvis Presley. Não tive de fazer o mesmo em relação a Michael Jackson.” O seu falecimento, se não marca o fim de um ciclo da cultura popular, é pelo menos um primeiro fim de uma era, a da MTV, que começou a vacilar há uns dez anos com a generalização da internet. Michaelangelo Matos tem uma opinião mais categórica, expressa de forma cirúrgica: este é “o fim da monocultura”. Por coincidência, no mesmo momento em que o capitalismo ultraliberal, outra relíquia dos anos 1980, corre sério risco de ir desta para melhor.
A morte de Michael Jackson junta-se à curta lista de gente da qual é costume retermos na memória o instante em que soubemos do seu passamento. Uma lista que também tem Elvis Presley e John Lennon – e numa escala mais de culto, Ian Curtis e Kurt Cobain). São ídolos pop que saíram de cena muito antes do seu filme chegar ao fim.
P.Y.T. (PRETTY YOUNG THING)
Michael Jackson conquistou o mundo com canções funk-pop e passos de dança mais leves do que o ar. A sua morte é o princípio do fim da geração MTV?
Esta história inicia-se a 23 de Julho de 1968. Um clip colocado no YouTube mostra uma audição dos Jackson 5 para a Motown onde o grupo toca uma versão de ‘I Got the Feelin’’ de James Brown. A audição convenceu Berry Gordy a contratar o quinteto de irmãos que já começava a dar nas vistas na sua cidade de Gary, à porta de Chicago, tocando intensivamente em bares de strip e nas salas do circuito chitlin’ (os poisos mais seguros para músicos negros no leste e sul dos EUA). O autor da filmagem ignora em absoluto os quatro rapazes alinhados em segundo plano, às voltas com os instrumentos, apostando tudo no miúdo de nove anos que canta e dança com a fluidez e confiança daqueles que, nas palavras imortais das Sisters Sledge, se encontram ‘lost in music’. Um metro e meio de gente compenetrado na entrega de uma versão mais esguia e menos suada dos movimentos e dos tiques vocais do padrinho da soul. Uma performance magnética de uma criança que parece combinar talento inato com uma rodagem precoce e que, já perto dos três minutos de actuação, pisca o olho ao futuro ondulando as pernas como se ensaiasse o moonwalk. Do espírito do padrinho da soul começava a desprender-se o futuro rei da pop.
O Michael Jackson que faleceu a 25 de Junho em Los Angeles, vítima de paragem cardíaca, foi uma estrela precoce. Foi alvo de violência física e emocional pelo pai-maestro-manager Joseph Jackson. Ingressou, com quatro dos oito irmãos, numa etiqueta discográfica, a Motown, gerida por Berry Gordy como qualquer coisa entre uma fábrica, um quartel e uma família, e que em troca derramou os hits que fizeram da música soul música pop. Michael Jackson foi o astro mais imponente que a canção popular viu nascer nos últimos 40 anos, mas para o ser teve que passar ao largo de qualquer semelhança de normalidade. Como se não bastasse as famílias (a de sangue e a editorial) destemperadas, viu-se estrela aos dez anos com ‘I Want You Back’, levando-lhe as últimas hipóteses de uma infância e adolescência parecidas com as das outras pessoas. Em declarações no polémico documentário “Living With Michael Jackson”, produção de 2003 do jornalista britânico Martin Bashir (Michael achou o programa tendencioso e negativo para a sua pessoa; seguiram-se acções em tribunal e um contra-documentário com a versão do cantor), ele recorda com embaraço as digressões dos primeiros tempos em que um irmão (Michael não diz qual) com quem partilhava o quarto de hotel e a cama levava companhia feminina de ocasião e obrigava o miúdo a jurar que não abriria os olhos enquanto durasse a rebaldaria entre lençóis mesmo ao seu lado. Nos anos 70 ele punha os corações de adolescentes a bater mais depressa mas a sua própria relação com as raparigas era uma atrapalhação – no mesmo documentário, ele conta como aos 17 anos foi parar ao quarto da actriz Tatum O’Neil (ela tinha 12) e ficou quase em pânico quando ela tentou seduzi-lo (Tatum O’Neil tem uma versão diferente da história: os avanços foram mútuos, assim como a confusão e o desconforto).
Ao fazer da música soul música pop, a Motown acabava por demarcar concorrentes menos óbvios para Michael e os restantes Jackson 5. Até saírem da editora de Detroit em 1975, os Jacksons mediram forças nas tabelas de vendas com outra família musical de colossal sucesso, os Osmonds, e as marcas deixadas pela competição eram tão profundas que ainda tinham eco em 1981. Em Abril desse ano, o semanário britânico NME entrevistou os Jacksons em Los Angeles, e entre os assuntos a evitar pela imprensa, prevenia um funcionário da editora da banda, estavam os Osmonds, que nessa altura já nem incomodavam os tops (o outro tópico interdito era a astrologia, por contra a religião grupo – Testemunhas de Jeová). O mesmo funcionário chama a atenção para eventuais comportamentos mais exóticos de Michael: “Ele pode parecer estranho aos olhos das pessoas que não o conheçam. Por exemplo, pode acontecer que, quando lhe colocares uma questão, ele necessite que um dos seus irmãos – geralmente a irmã Janet [então com 14 anos] – a segrede ao seu ouvido. Ele pode dar a impressão de estar nas nuvens mas continua presente – tem apenas a ver com a sua maneira e ser. Ele gosta que alguém da família lhe explique as perguntas antes de responder. Penso que é uma questão de confiança.”
Foi com “Thriller”, lançado em Novembro de 1982, que a indústria musical ganhou o seu equivalente a “Tubarão”. Se o filme de 1975 de Steven Spielberg marca o início da era dos blockbusters no cinema, “Thriller” é o tiro de partida temporal a partir do qual surgirá a esmagadora maioria dos discos mais vendidos de sempre. A diferença em relação ao passado recente era abissal. No site Salon, o jornalista americano Michaelangelo Matos lembra como “há 30 anos, a indústria discográfica quase que sucumbia graças ao excesso de gastos alimentados a cocaína e à ressaca do disco-sound. O arranque da MTV a 21 de Novembro de 1981 ajudou a inverter a situação fomentando um ressurgimento do top 40 que fez dos meados dos anos 80 o melhor período para as rádios de sucessos desde os anos 60 ou mesmo, defendo eu, de sempre. Mas “Thriller” teve muito mais a ver com essa mudança”.
Como é que se vendem 109 milhões de exemplares de um álbum em todo o mundo? Sem desprezar o efeito bola de neve do qual toda a fama em grande escala depende, “Thriller” é um disco para toda a família na sua alternância entre pop-funk dançável e faixas midtempo, sobre o qual paira quase sempre o olhar aberto, ou ‘desarmado’, associado à infância, mesmo que tal atitude soe, a espaços, inverosímil (mais um ponto de contacto com parte importante da cinematografia de Spielberg). É, porventura, o mesmo ‘arrested development’ de quem tentou compensar a ausência de uma infância ‘normal’ vivendo o resto dos seus dias em evocação desse tempo – para que outra coisa serviria o seu rancho Neverland, criado em 1988 e no qual Jackson instalou divertimentos com que miúdos de dez ano sonham (jardim zoológico, montanha russa, carrinhos de choque)?
“Thriller” tem momentos de um modernismo de cortar a respiração, sobretudo em ‘Billie Jean’, e os passos de dança de Michael Jackson são mais leves do que o ar, mas é no disco anterior que ele se ouve em estado de graça. “Off the Wall” saiu em Agosto de 1979, chegou aos 20 milhões de exemplares despachados das lojas e contém as obras-primas ‘Don’t Stop ‘Til You Get Enough’ e ‘Rock With You’. Nas palavras do crítico inglês Mark Fisher, esta é uma obra “ainda dominada pela febre de sábado à noite, delirante com todas as promessas doces como o Verão do disco-sound. Aqui [o produtor] Quincy Jones e Jackson construíram uma suite de canções que fez em relação à cultura negra de dança do final dos anos 70 o mesmo que as novelas e histórias de Scott Fitzgerald fizeram em relação a um momento americano mais recuado no tempo, mais branco e endinheirado: elas moldaram as frágeis evanescências da juventude da dança em belos mitos, ornamentados com fabulosos anseios que essas canções não podiam moderar nem esgotar”.
O que se ouviu e viu com “Off the Wall” e “Thriller” estabeleceu o melhor e mais colossalmente influente Michael Jackson. A partir de meados dos anos 1980, aquilo que o tornou incomparável pelas melhores razões começou a perder terreno para um universo onde cada excentricidade e cada passo da sua vida incham até sufocarem a arte, o que o tornava especial. A discografia, espaçada e de qualidade acidentada, assinala um disco decente (“Bad”, de 1987) e três registos (“Dangerous”, “HIStory” e “Invincible”, de 91, 95 e 2001) onde um punhado de pérolas espreita entre batidas datadas e baladas diabéticas. Michael Jackson entra num processo de lenta mas segura liquefacção – na música, na aparência física, na memória. Os últimos 20 anos foram os anos das cirurgias plásticas não quantificadas, das doenças, dos três filhos e do próprio Michael ocultados por máscaras, das suspeitas de abuso de menores resolvidas fora do tribunal, das dívidas, do casamento meteórico com Lisa Marie Presley, da dependência de analgésicos. A morte encontrou-o aos 50 anos: um ciborgue despigmentado que, na volta, ainda acreditava em Peter Pan. Estava prestes a iniciar uma temporada de 50 espectáculos na arena O2, em Londres, que o manteriam ocupado até Março de 2010. Parecia um regresso a valer.
“No mundo lá fora, muito para lá da Europa ocidental e dos Estados Unidos, os territórios que gostamos de pensar como sendo o mundo conhecido em termos de ‘beat music’, ele [Michael Jackson] foi o inventor da música pop e “Thriller” o Ano Zero”, diz David Hepworth, proprietário da revista britânica The Word. “Há alguns anos, numa localidade no interior da Etiópia, tive de explicar a um homem com estudos quem tinha sido Elvis Presley. Não tive de fazer o mesmo em relação a Michael Jackson.” O seu falecimento, se não marca o fim de um ciclo da cultura popular, é pelo menos um primeiro fim de uma era, a da MTV, que começou a vacilar há uns dez anos com a generalização da internet. Michaelangelo Matos tem uma opinião mais categórica, expressa de forma cirúrgica: este é “o fim da monocultura”. Por coincidência, no mesmo momento em que o capitalismo ultraliberal, outra relíquia dos anos 1980, corre sério risco de ir desta para melhor.
A morte de Michael Jackson junta-se à curta lista de gente da qual é costume retermos na memória o instante em que soubemos do seu passamento. Uma lista que também tem Elvis Presley e John Lennon – e numa escala mais de culto, Ian Curtis e Kurt Cobain). São ídolos pop que saíram de cena muito antes do seu filme chegar ao fim.
Comentários
Quero dizer, acho que o começo do fim deu-se no número da Billboard com a data 11 de Janeiro de 1992 na capa. Um certo power-trio de Seattle desaloja do n.º 1 da tabela de álbuns precisamente quem? Michael Jackson. Já se tornou opinião comummente aceite que esse foi o momento em que a música dita alternativa tomou de assalto o mainstream e tornou, por breves momentos, as estrelas glamorosas da idade de ouro da MTV em relíquias de um passado muito recente.
E se é verdade que a pop mais despudoradamente, erm, populista voltou para se vingar na segunda metade dos anos 90, o facto é que o impacto da explosão alternativa deixou marcas permanentes. A princípio, fez com que o mainstream tal como o conhecíamos começasse a sua caminhada para a inexistência, e não só em território americano. Dos dois lados do Atlântico, qualquer pessoa que seguisse minimamente as tabelas de preferências oficiais podia verificar que não era assim tão invulgar vermos coisas tão aparentemente radicais como uns White Zombie, Nine Inch Nails ou Pantera partilharem o topo dos tops com um Michael Bolton, um Kenny G. ou um Garth Brooks. Ou coisas tão descaradamente "de rua" como Dr. Dre, Cypress Hill ou Bone-Thugs-N-Harmony a competirem alegremente com os Hootie & The Blowfish, Counting Crows ou Gin Blossoms pela carteira dos consumidores. Ou sumidades supostamente indie como os Oasis, Blur ou Pulp a darem luta aos Take That, Boyzone ou East 17 no coração das adolescentes mais impressionáveis. Ou ainda um qualquer eminências pardas de um outrora underground dançante como uns Prodigy, Leftfield ou Underworld a conviverem em saudável harmonia com um Seal, uma Gabrielle ou uma Des'ree.
E assim sucessivamente. Até chegarmos ao fim da décade de 90 e vermos as mesmas miúdas que se deliciavam com os Backstreet Boys ou a Britney Spears a ouvirem Limp Bizkit ou Papa Roach no mesmo trago sem que ninguém pestanejasse. O resto, como sói dizer-se, é História. O que a Internet - e todas as consequências dela originadas: Napster, iTunes/iPod, YouTube, etc. - fez não foi mais do que acelerar a construção de uma teia que já há algum tempo se tinha tornado demasiado intrincada para alguma vez poder ser desfeita.
Obviamente que podemos debater vantagens e desvantagens nisso - o Peter Robinson, por exemplo, apresentou convincentes argumentos contra o actual estado de coisas no número de balanço de 2008 da Word. Mesmo assim, o rumo dos acontecimentos diz que o senhor Popjustice mais não ganhará do que uma fátua vitória moral por se mostrar tão romanticamente avesso às circunstâncias que o rodeiam. Mais: parece-me que, no futuro, o texto dele simbolizará, à sua maneira, um sentido epitáfio a um tempo que dificilmente (nunca?) voltará.