É Coisa de Rapaz ou Rapariga?

(publicado na J em Julho de 2007)


ELE ERA ELA ERA ELE

Visto da fachada, parece mais um filme com e para adolescentes liceais americanos, mas É Coisa de Rapaz ou Rapariga? vai bastante para lá do simplismo associado a esse tipo de produções juvenis, rasando a profundidade de algodão doce que o realizador e produtor John Hughes conseguiu obter nos anos 1980 em filmes como Pretty in Pink e O Clube.

O filme segue uma miúda (Samaire Armstrong) e um tipo (Kevin Zegers) nos seus últimos tempos de liceu. São da mesma turma, cresceram juntos, moram lado a lado mas dão-se como gata e cão. Nell/ Samaire é uma aluna exemplar que lê e idolatra Romeu e Julieta de Shakespeare, tem poucos amigos, é bonita, usa palavras caras e está a caminho da prestigiada universidade de Yale. Woody/ Zegers joga futebol americano, forma uma espécie de par modelo com a líder da claque da equipa, mas sabe que as hipóteses de singrar no desporto são ténues e que, à falta de queda para o estudo, é bem capaz de ir parar à loja de espátulas do pai. Ela e ele andam em choque permanente, mas embora cedo se desconfie que hão-de acabar nos braços um do outro, o caminho tomado pelo filme é bastante menos linear e muito mais recheado de conteúdo do que se imaginaria.

Durante uma das suas habitais discussões, Nell e Woody são enfeitiçados por um deus azteca e trocam de corpo, obrigando-os a aprender a lidar com a identidade do “inimigo” enquanto não encontram forma de resolver o imbróglio. Passam por vários estádios: confusão, fúria, vingança (a fase mais divertida e demente do filme, com Nell a transformar Woody numa flor de estufa e Woody a compor uma Nelly muito mais sexy e atiradiça) e uma progressiva adaptação-fusão das personalidades aos novos corpos. Os equívocos precipitam a comédia, mas também são uma forma inteligentíssima de sublinhar a confusão da identidade sexual na adolescência. Além de questões de género, o filme aproveita a desigualdade de estatuto social entre as famílias de Nell (classe média alta com aspirações) e Woody (média baixa, embrutecida) para uma rara apologia da dignidade da classe operária no cinema mainstream americano. E como se isto já não bastasse, o final ainda dá-se ao luxo de trocar as voltas ao destino “natural” do par do filme. Há muito que se pensava que já não havia filmes destes…

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