Interface Jazz-Música de Dança

(publicado no Blitz, algures em 2000)


PIONEIROS, DESTABILIZADORES E VISIONÁRIOS

Antes de servir de importante fonte de inspiração da música de dança, o jazz constituiu, durante uma parte importante do século XX, não apenas a representação mais duradoura do próprio conceito de música de dança, como também a essência da música pop(ular). Assim foi no tempo das big bands e do swing. Contudo, o nascimento e consolidação do rock na década de 50 determinaram o fim dessa era. Até aos anos 90, jazz, pop e música de dança percorreram caminhos paralelos, com episódicos pontos de encontro. De entidade dominante, o jazz passou então a exercer, através da multiplicidade de formas que foi adquirindo, uma influência subliminar mas eficaz sobre os sons que chegavam ao grande público. Com as inevitáveis asneiras, como os piores tiques do conceito de fusão transformados em solos masturbatórios na era do disco-sound, 99,9 por cento do acid jazz e os actuais dejectos house ambientais.

A década de 90 é o momento em que, quer por influência num vastíssimo espectro de criadores de outras áreas, quer pela sua própria contribuição directa, o jazz volta a estar implicado, embora em parâmetros radicalmente distintos dos da primeira metade deste século, no desenvolvimento e na configuração da música de dança e da música pop(ular). Entre os que percorreram esses caminhos paralelos, uns foram deixando pistas para o futuro, outros souberam reconhecer e aproveitar esses sinais, outros ainda baralham os dados e tratam de manter o futuro em aberto.

A Guy Called Gerald. É bastante provável que um punhado de noções retiradas das franjas mais experimentais do jazz já povoassem a imaginação de Gerald Simpson quando, em plenos anos 80, na sua Manchester natal, decidiu abandonar os 808 State para encetar uma carreira a solo como A Guy Called Gerald, atingindo de imediato o coração das listas de vendas com o bizarro single “Voodoo Ray”, objecto que já não era house nem tecno, onde uma cadeia de efeitos básicos cediam a boca de cena a um ritmo quebrado e espectral que apostava quase tudo na pulsão do baixo. Infelizmente, o sucesso deste objecto proto-jungle lançou-o nos braços de uma relação conflituosa com a multinacional Sony, que resultou num longo período de silêncio. O regresso, triunfal, aconteceu em 95, com o álbum Black Science Technology, e a sua própria etiqueta, a Juicebox.

Atkins, Juan. Pioneiro do tecno de Detroit, exerceu grande influência sobre diversos idiomas da música de dança através dos lançamentos da sua editora Metroplex, criada em 1985. Do jazz, adoptou o carácter afrocêntrico e simultaneamente fantasioso e visionário (dir-se-ia futurista) inscrito na música de Sun Ra, a que juntou, em conformidade filosófica, o fascínio pelo eixo P-Funk. Em duas décadas de actividade já editou trabalhos sob designações como Cybotron (com Rick Davies), Channel One, Infinity, Output e, sobretudo, Model 500. Foi com este nome que chegou aos escaparates, em 1999, o álbum Mind and Body.

Clinton, George. Ou seja, a revoada sónica delirante projectada pela Mothership via Parliament e Funkadelic. Aos seus primórdios no meio soul de Detroit, Clinton foi acrescentando música que jogasse com substâncias ácidas, com paragem obrigatória no rock psicadélico, tudo feito em prol da elaboração de um som que muito devia à fluidez e ao aparentemente desconexo assalto sensorial do free jazz. Entre os parceiros na conspiração encontrava-se um lote de músicos de referência por si próprios, como o guitarrista Eddie Hazel, o teclista Bernie Worrell e, sobretudo, o baixista Bootsy Collins. O título de um dos álbuns mais famosos dos Funkadelic explica quase tudo: Free Your Mind... And Your Ass Will Follow.

Craig, Carl. Mais do que os pioneiros que o apoiaram no início da carreira, Carl Craig é o arquétipo do criador musical contemporâneo na medida em que, à constante progressão através do universo digital, faz corresponder um apuradíssimo olhar retrospectivo sobre o legado sonoro deste século. Nascido em Detroit em 1969, começa por gravar para a Transmat, de Derrick May, antes de criar a sua própria editora, Retroactive, seguida, a partir de 1991, pela Planet E Communications. À variedade de designações artísticas (Paperclip People, 69, Psyche, BFC) correspondem incursões pelo house, tecno, electro, hip-hop ou funk. O reconhecimento que desde cedo obtém na Europa dá direito a diversas ligações editoriais, que culminam com a edição do primeiro álbum em nome próprio, Landcruising, em 95, a que se seguiu, em 97, More Songs About Food & Revolutionary Art. As influências do jazz tornam-se evidentes com o aparecimento, em 92, da Innerzone Orchestra, com o histórico single de estreia “Bug in the Bassbin”, a que se seguiu, já no ano passado, o brilhante álbum Programmed, onde as viagens intergalácticas empreendidas em módulo free jazz convivem com os detritos digitais da era industrial, dub, soul & etc.

Davis, Miles. Começou ao lado de Charlie Parker, andou pelas baladas, deu sustento sonoro à palavra cool, transformou o bebop, criou a improvisação modal, o free jazz, a fusão com o rock e o funk. Na era de Birth of the Cool a sua banda incluia J.J. Johnson, Jimmy Heath, Horace Silver, Art Blakey e Sonny Rollins. Com os arranjos do notável Gil Evans editou, no fim dos anos 50, os álbuns Miles Ahead, Porgy and Bess e Sketches of Spain. Em Kind of Blue era ladeado por John Coltrane, Cannonball Adderley e Bill Evans, entre outros. As suas formações nos anos 60, cada vez mais arrojadas e eléctricas, recorreram a Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams, Wayne Shorter, Chick Corea, Dave Holland e Jack DeJohnette. In a Silent Way e Bitches Brew são o protótipo da música de fusão. Prodígio da subtileza, dos arranjos de imponderável mestria, leveza e complexidade. Poucos nomes imprimiram uma marca tão decisiva na evolução de tantos idiomas musicais na segunda metade do século XX como Miles Davis.

4 Hero. Mark Mac e Dego percorreram os últimos 15 anos sempre um passo estético à frente do pelotão. Deram os passos introdutórios no hip-hop londrino e, no momento em criaram a editora Reinforced, já andavam pelos sons mais radicais que passavam pelas raves, a que se seguiram, no início dos anos 90, as primeiras experiências com o jungle. É também nessa altura que começam a desdobrar-se por projectos paralelos, como os Tek 9, Jacob's Optical Stairway, Nu Era ou Manix, desenvolvendo múltiplas linguagens que, de certa forma, acabaram por desaguar no magnífico álbum de 1988, Two Pages (editado pela Talkin' Loud), onde o breakbeat se deixa contaminar pela soul, jazz de fusão e farrapos de música ambiental e de câmara.

Guru. É o mais conhecido instigador das relações entre o hip-hop e o jazz, quer a solo, quer através dos Gang Starr. A solo, com o famoso e histórico álbum Jazzmatazz, de 94, celebração de afinidades entre territórios musicais que contou com a colaboração de Donald Byrd, Roy Ayers (do que resultou uma merecida reabilitação das respectivas carreiras), Ronnie Foster e N'Dea Davenport, dos Brand New Heavies. Com os Gang Starr (isto é, com DJ Premier) em diversos trechos espalhados pelos seus quatro álbuns de originais.

Hancock, Herbie. A sua influência sobre a música electrónica e de dança tem uma dimensão apenas suplantada por Miles Davis, de cuja banda fez parte entre 1963 e 68 (antes, integrara a formação de Donald Byrd). A partir de então, a sua produção em nome próprio atravessa géneros musicais com uma desenvoltura surpreendente. A par dos Weather Report, instalou a sonoridade marcante do piano eléctrico Fender Rhodes (e, com ele, qualquer coisa de funk) no coração do jazz de fusão. Combina o gosto pelo repertório mais clássico com uma acentuada atracção pela tecnologia, especialmente visível na sua produção a partir dos anos 70, com ponto alto no êxito artístico e comercial do álbum Headhunters. Uma atracção cujos frutos de excepção se prolongaram até ao início da década seguinte, quando o tema “Rockit”, num registo electro-mutante, atinge uma inusitada repercussão popular. Pouco tempo depois, começar-se-ia a ouvir falar de um movimento musical chamado house. Curiosamente, e tal como Herbie Hancock, também nascido em Chicago...

May, Derrick. Além do seu papel pioneiro na implantação do tecno a partir do centro de operações em Detroit (ao lado de Juan Atkins e Kevin Saunderson, com quem chegou a partilhar o projecto Deep Space Soundworks), Derrick May foi um dos maiores arquitectos de pontes estilísticas, já que era capaz de trazer, para o interior de um código sonoro duro, uma conjugação de elementos aparentemente tão díspares como a calorosa desordem do P-Funk, a electrónica dos Kraftwerk, a pop sintética e geométrica e a desenvoltura festiva do house. Foi assim que, ao longo da década de 80, obteve sucesso nas pistas de dança e tabelas de vendas (sob a designação Rhythm Is Rhythm, nomeadamente através do tema “Strings of Life”), além de influenciar a carreira de novas gerações de criadores como Carl Craig, Richie Hawtin e Stacey Pullen. Nos anos 90, privilegiou a actividade como produtor, DJ e responsável pela editora Transmat. Não é por acaso que o último lançamento em nome próprio é uma compilação intitulada The Innovator.

Salsoul Orchestra. Organizada por Vincent Montana Jr. em 1974, a Salsoul Orchestra traçou as características primordiais das formações inspiradas nas big bands que, pouco depois, se tornariam uma das imagens de marca da explosão disco-sound, com a sua mistura de sons latinos, música soul e funk, aproveitando também o currículo de Montana como vibrafonista de jazz. Com formações variáveis (chegaram a atingir a meia centena de elementos) e um trabalho paralelo de banda de suporte de estúdio para divas das pistas de dança como Grace Jones ou Loleatta Holloway, a Salsoul Orchestra inspirou ainda a criação da editora Salsoul, que publicou toda a sua obra, desde o álbum homónimo de estreia, em 75, até Christmas Jollies II, em 1981. Entre as cantoras que por lá passaram, destaque para Jocelyn Brown, “recuperada” nos anos 90 pelos Masters at Work através do projecto Nuyorican Soul.

Shepp, Archie. A influência deste saxofonista sobre os criadores situados nas margens experimentais da música electrónica (com graus subjectivos de apelo dançável) pertence tanto aos domínios da inspiração filosófica como à acção sónica (à semelhança de Pharoah Sanders ou Ornette Coleman) e baseia-se maioritariamente na sua actividade nos anos 60, com a sua própria formação e ao lado de Cecil Taylor ou Don Cherry (em The New York Contemporary Five), quando surgiu na linha da frente do free jazz mais radical, que juntava uma visão desassombrada das possibilidades da linguagem musical ao empenho social em prol da consciência política da população afro-americana. Características que se foram desvanecendo a partir da década seguinte.

Schifrin, Lalo. Nascido em Buenos Aires em 1932, segue uma carreira extremamente diversificada, envolvendo-se na música erudita, jazz e rock, tornando-se famoso através das bandas sonoras que compôs para filmes como Bullitt e Dirty Harry. É dele também, por exemplo, o genérico da série televisiva Mission: Impossible. Na década de 50 tocou trompete na banda de Dizzy Gillespie. Colaborou igualmente com Quincy Jones, Jimmy Smith, Stan Getz e Count Basie. Ajudou a definir os parâmetros das bandas sonoras nos anos 60 e 70 através de uma sonoridade orquestral, que juntava a opulência das big bands com uma refinadíssima dinâmica que muito devia ao funk. A voluptuosidade do seu som de marca revelou-se decisivo, por exemplo, no desenvolvimento de algumas das manobras mais ambiciosas do big beat.

US3. A questão suscitada aquando do êxito mundial do álbum de estreia deste duo londrino, Hand on the Torch, em 1993, é sintomática dos tempos e dos modos de pensar a música: é este um grupo de jazz ou não? Para os guardiões da música como escala imutável de valores e definições a resposta era, naturalmente, negativa: como qualificar de jazz o trabalho de dois manipuladores de tecnologia – Geoff Wilkinson e Mel Simpson – a quem a editora Blue Note abriu as portas do seu valioso arquivo para um exercício de reformulação do jazz clássico à luz dos anos 90, desmontando o som via hip-hop e incorporando vocalizações rap? Para o resto da população, tratou-se apenas, e muito bem, de diversão à custa do património musical, independentemente de definições estilísticas. A mesma população que, no entanto, ignorou por completo o álbum seguinte, Broadway & 52nd, de 1997.

Weather Report. Em 1970, Joe Zawinul (teclados), Wayne Shorter (saxofone), Miroslav Vitous (baixo), Airto Moreira (percussão) e Alphonse Mouzon (bateria) deram origem a uma formação que se situa na génese de uma sonoridade que, mais do que qualquer outro projecto associado à designação, operava a fusão quase perfeita do jazz com o rock, funk e uma constelação de referências das mais variadas latitudes, em especial da música latina e africana, numa espécie de antecipação do que, a partir dos anos 80, se convencionou apelidar de world music. A sua sonoridade e visão arrojada propagou-se por uma discografia abundante e com inúmeros pontos altos, como o álbum de estreia I Sing the Body Electric (1971), Sweetnighter (73), Black Market (76) e Heavy Weather (77). Aos seus 15 anos de vida corresponderam diversas mudanças de formação, que pouco alteraram a orientação estética estabelecida por Zawinul e Shorter, antigos elementos das formações eléctricas de Miles Davis. Ainda assim, por lá passaram, entre outros, o super-baixista Jaco Pastorius, os bateristas Peter Erskine e Omar Hakim, e o percussionista Mino Cinelu.

Comentários

Ricardo disse…
Ha, nem acredito que só agora dei por isto!
Como também nem consigo acreditar que, passados estes anos todos, possa dizer, com toda a propriedade, que o Hand On The Torch ganhou demasiadas rugas, mas que o primeiro volume da saga Jazzmatazz ainda soa bem enquanto artefacto do seu tempo.
Tudo o resto é grande ontem, hoje, amanhã e depois!
Jorge Lopes disse…
Na memória (que não pego neles há mais de uma década) soam-me ambos no mesmo patamar. Isto é, passada a horrorosa sobreexposição e ainda mais horrorosa elevação ao patamar de "discos de hip-hop favoritos daqueles a quem o hip-hop mete asco", desconfio que sejam 2 discos amáveis de 1 subcorrente mediana da década passada.

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