Innerzone Orchestra

(publicado no Blitz em Setembro de 1999)


INNERZONE ORCHESTRA
PROGRAMMED
(Mercury/Universal)

Carl Craig é um dos mais aventureiros criadores identificados com o movimento tecno de Detroit, homem de vários disfarces sempre pronto a arriscar a mão por territórios musicais que o preconceito, a preguiça ou os estudos de viabilidade financeira jamais aconselhariam. É este percurso ousado que atinge, em Programmed, um pico de forma e de inspiração que se afiguram dificilmente ultrapassáveis.

Uma vitalidade impressionante que nos atinge envolta numa espécie de argumento cinematográfico feito história vampiresca contemporânea (Blakula percorre todo o planeta em busca de sangue, rumando depois ao cosmos em busca do "planeta negro" quando o líquido vital começar a faltar por estas redondezas) que confere a este registo umas certas feições conceptuais mas apenas perceptíveis através da leitura das notas inclusas no livreto; notas que se referem a Carl Craig na terceira pessoa e através de citações, um pormenor alicerçado num apuradíssimo sentido de humor mas que passa - facto louvável - rigorosamente despercebido aos que dedicarem toda a atenção à mais pura fruição sónica. Na verdade, as linhas de argumento que correspondem à belíssima lentidão monocromática de "Architecture" (que conta com a ajuda de Richie Hawtin/ Plastikman nas programações) tratam de confirmar que essa era a intenção de Craig, que sublinha como o "conceito sonoro e visual deste filme é, para mim, mais importante do que o diálogo".

Programmed capta o jazz, o hip-hop, o tecno (em formato urbano-abstracto e cinemático, longe da funcionalidade das pistas de dança), a soul e o romantismo barroco de cordas clássicas em flagrante e mais do que promíscuo delito carnal. Todavia, a veia (pois...) jazzística acaba por ser a principal protagonista deste enredo, pulsando esplendorosamente em "Eruption", movimento perpétuo num oceano subterrâneo de águas revoltas e primordiais; num "Basic Math" que parece reunir a dissonância comandada por um piano eléctrico dos Weather Report com os devaneios do violino de Jean Luc Ponty; e na dupla "Galaxy"/ "At Les", que cumprem a promessa de remeter o ouvinte para os domínios (não) delimitados pelo nome da primeira faixa.

Vasculha-se a memória e não ocorre detectar, no passado recente, outro disco onde os universos do jazz e da música electrónica hajam estabelecido contacto de forma tão feliz. Unindo o tecno ao jazz (de fusão...), contornando o perigo da diluição das suas componentes primordiais numa papa sedada (ou seja, nada a ver com o preocupante regresso do acid-jazz à galeria dos produtos musicais em voga), Programmed comete a proeza de convocar alguns dos movimentos fulcrais da história da música em prol da arriscadíssima missão de revitalização do jazz através do sangue (pois...) conquistado no terreno minado da música pop(ular). O mais saudável adultério.

Comentários

Ricardo disse…
Esse álbum ainda continua muito lá. E não só em abstracto, como ainda há pouco tempo tive oportunidade de confirmar.
Aliás, quase dez anos depois, achas que essa prosa ainda faz sentido quando aplicada à tua pessoa?
Jorge Lopes disse…
Faz mais sentido do que imaginava antes de relê-lo.

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