Entrevista
A Ana Luzia fez um trabalho chamado A Crítica Musical na Imprensa Portuguesa, na conclusão do 4º ano do curso de Comunicação Social do ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa. Para esse trabalho, entrevistou-me a mim, ao Vítor Belanciano, ao Nuno Ferreira e ao Luís Lamelas, da Universal. É um trabalho útil numa área que, imagino, deve estar quase deserta em termos de produção teórica-universitária em Portugal.
Com a devida autorização, aqui está, na íntegra, a minha entrevista:
1 - Há quanto tempo trabalha em crítica musical na imprensa?
Desde 1995.
2 - Antes disso, qual foi o seu percurso, profissional e académico?
O meu percurso profissional começou em simultâneo com o percurso na crítica musical em imprensa – Blitz, Fevereiro de 1995. Em termos académicos, e após a conclusão do 12º ano, frequentei os quatro anos do curso de Comunicação Social da Escola Superior de Jornalismo, no Porto – de 1989/1990 a 1992/1993. Deste curso obtive o grau de licenciatura em jornalismo internacional, com uma tese sobre a imprensa partidária minoritária no Portugal do PREC (i.e., de 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975). A tese foi apresentada em Fevereiro de 1995 e rendeu-me uns tolerantes e generosos 14 valores.
3 - Que bases lhe deu esse percurso?
Não compreendo bem a questão: perguntas-me que bases me deu o meu percurso académico, ou que bases me deu o meu percurso profissional até agora, ou ambas as coisas?
4 - De facto, a pergunta é que bases lhe deram ambos os percursos.
O que de mais relevante o curso de Jornalismo me deu foi um esqueleto teórico e prático sobre os alicerces «genéticos» do ramo, tanto em termos de imprensa (fotojornalismo incluído) como de rádio e de televisão. Havia também uma série de cadeiras menos directamente ligadas à prática jornalística mas potencialmente importantes em termos de fornecimento de e estímulo para diversas matérias que se cruzam com esta actividade (informática, estatística, gramática, sociologia, psicologia, semiótica, história, etc.). O interesse e a relevância destas cadeiras variava, naturalmente, conforme os interesses de cada candidato a jornalista e, sobretudo, com as virtudes e defeitos comunicacionais dos respectivos professores.
O que de mais relevante me deu o percurso profissional até agora foi o enormíssimo privilégio de o poder desenvolver precisamente nas áreas artísticas e jornalísticas de que mais gosto, e com o maior grau de liberdade crítica (ou, em termos mais latos, de liberdade de expressão) que é possível pedir em meios de comunicação social de massas. Incluindo a possibilidade de confrontar e trocar ideias e conversar com criadores artísticos. E, já agora, as viagens de trabalho ao estrangeiro – uma mudança regular de ares, o contacto com outras realidades, são absolutamente cruciais para quem faz jornalismo (ou carpintaria, ou contabilidade, ou…) em Portugal. Mesmo que sejam viagens de ida e volta em 24 horas. Se não fosse tão dispendiosa, creio que devia ser obrigatória em todos os cursos a existência de uma cadeira de, sei lá, Incursões Internacionais. É o tipo de coisa que a Internet, por muito larga que seja a janela que abre para o mundo, não substitui.
5 - Que etapas percorre normalmente para a construção de uma crítica?
No caso de uma crítica discográfica, a etapa que vale quase tudo é escutar o disco. É absolutamente essencial escutá-lo mais do que uma vez antes de concluir a prosa crítica. A quantidade de vezes que se ouve um disco, o volume de atenção que se lhe pode dedicar, está condicionado pelo que o restante trabalho em carteira autoriza em termos temporais. Neste sentido, duas audições podem chegar para desenrascar um texto mais ou menos digno se se estiver a lidar com um disco que exista num quadro estético que já seja familiar ao crítico. Todavia, e regra geral, três a quatro audições é um volume mais adequado para obter o grau de familiaridade com o objecto sonoro necessário para dele retirar uma crítica convincente.
Ter em atenção as letras (quando existem, claro) impressas ou somente entoadas também é importante e pode exigir atenção específica. Os textos complementares incluídos no objecto disco (i.e., no livreto) e o ambiente gráfico em que a rodela vem embalada também devem ser tidos em conta na absorção crítica geral.
6 - Faz muita pesquisa para produzir a crítica?
Idealmente, se o tempo e a disponibilidade económica o permitirem, a audição de discos anteriores do artista/grupo sobre o qual se está debruçar, e/ou a audição de discos que existam no mesmo comprimento de onda temporal/sonoro, podem ser actos importantes para efeitos de contextualização. Quanto à leitura de textos complementares, a quantidade depende, mais uma vez, se se estiver ou não a lidar com um disco que exista num quadro estético que já seja familiar ao crítico.
6 - Em que tipo de material se apoia para produzi-la?
Para produzir a crítica discográfica ou para produzir a pesquisa?
7 - Para produzir a crítica discográfica. Mas penso que esta pergunta acaba por se tornar um pouco repetitiva. Assim, o que é realmente importante saber aqui é: Que peso tem o factor Internet, como material para produzir a crítica?
Tem um peso primordial quando se procuram dados para contextualizar a matéria sobre a qual se trabalha. Nada se lhe compara nesse campo. Mas, por muito profissional e completo que seja, e no campo da crítica musical, não há esforço de contextualização que substitua ou se sobreponha à audição atenta e sistemática e cúmplice do objecto musical que nos calhou em trabalho.
8 - Eu estava a lembrar-me, por exemplo, da crítica que fez ao último álbum do Moby, em que fez também entrevista. O que é que retira daí? Retira alguma coisa que aproveita para a crítica?
Das entrevistas com os criadores da música (sobretudo quando elas acontecem pessoalmente, se bem que o mesmo possa aplicar-se a entrevistas telefónicas e por e-mail) abre-se sempre uma janela para um conhecimento dos mecanismos internos (biológicos?) de discos e canções a que, de outra forma, dificilmente se teria acesso. Tanto pelo que o artista diz e como o diz, como pelo que fica por dizer.
9 - Utiliza os press releases enviados pelas editoras? (Se não os utiliza, porquê?)
É uma decisão sem regra universal. Por norma, creio que não os utilizo, mas eles podem ser úteis e/ou importantes se forem a – apresentarem dados biográficos e/ou técnicos de uma forma clara e concisa, ou b – se consistirem de um ensaio crítico-literário produzido por alguém que tenha elevada intimidade com o artista/grupo em questão.
10 - Que peso têm esses press releases na produção da crítica?
Em média, têm um peso muito baixo. Mas é um território de oscilações muito grandes.
11 - Disse que em média os press releases têm um peso muito baixo na produção da crítica, mas que isto é um território com muitas oscilações. O que quis dizer com isto exactamente?
Sobretudo, quis dizer que os press releases podem ser mais ou menos úteis em termos informativos conforme o nosso grau de conhecimento prévio e relação ao estamos a analisar. Por exemplo: um press release sobre o primeiro álbum da banda x, pouco conhecida, poder-me-á ser muito mais útil do que um press release a acompanhar o novo álbum dos Pet Shop Boys, de quem possuo toda a discografia e sobre os quais já escrevi diversas vezes e sobre os quais leio com regularidade.
O mesmo sucede com a modalidade dos press releases em formato de ensaio literário, «de autor», mas aqui a variação tem tudo a ver com as virtudes de escrita de quem os produz. Neste campo, há textos cuja esperança de vida transcende por completo a relevância temporalmente limitada de um press release informativo «clássico»; ou que adquirem vida própria, exterior à música que os motivou. É o caso do texto do jornalista britânico Paul Morley que acompanhou, há poucos anos, as reedições de diversos álbuns dos anos 1970 de Brian Eno. Ou do texto do jornalista Pedro Gonçalves, feito para o novo álbum do projecto A Naifa (neste caso, o texto divulgado em press release era, na verdade, um texto incluído no livreto do álbum – uma prática também corrente).
11 - Muitas vezes a crítica pode ser subjectiva. Que cuidados tem na sua redacção?
Uma das definições para «subjectivo» encontradas no Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora, 8ª edição) refere algo «que pertence ao sujeito enquanto ser consciente». Uma das definições de «objectivo» encontradas no mesmo dicionário refere-se a algo «que existe fora do espírito e independentemente do conhecimento que dele possua o sujeito pensante». Assim, uma crítica é sempre (ou devia ser sempre…) subjectiva e objectiva.
Desta forma, os cuidados que tenho na sua redacção passam por, à partida em simultâneo e numa relação de forças variável texto a texto: extrapolar uma tentativa de obra de arte (escrita) a partir de uma obra de arte (sonora); contextualizar/ perceber o disco e o(s) autor(es) no mundo artístico, social, político, mediático que o rodeia; aplicar ferramentas jornalísticas básicas (o quê, quem, quando, onde, como, porquê).
Mas o cuidado principal é este: ser intelectual e emocionalmente honesto, e perceber que se está a trabalhar numa fascinante zona cinzenta entre a arte e o jornalismo, onde (para voltar às definições de dicionário) a experiência pessoal de um ser consciente se atravessa no caminho de um objecto que existe independentemente do nosso conhecimento.
10 - Alguma vez sofreu de algum tipo de pressão por parte de alguma editora para fazer a crítica de um trabalho?
Essas ocorrências são comuns e geralmente não têm o carácter intrusivo e «violento» implícito à palavra «pressão». Chamar-lhe-ia mais «pedidos» (para escrever críticas positivas, evidentemente; quando muito, não-negativas). É a responsabilidade jornalística e a honestidade de cada um (jornalistas, editores, directores) que responde nessas alturas. Se se entender que o disco usado como pretexto para os «pedidos» das editoras justifica uma crítica, ela faz-se. Se não o justifica, não se faz.
De qualquer forma, não é nas críticas que esse tipo de «pedidos» ocorre com mais frequência. As críticas têm um destaque e ocupam uma área de papel impresso muito inferior a um artigo de fundo ou a uma entrevista ou a uma capa. É nesses terrenos mais vistosos que os «pedidos» (e, aqui sim, as pressões) quase sempre ocorrem.
11 - No caso português, existe pouca imprensa especializada apenas em música. Pensa que isso prejudica a forma como a crítica é concebida em Portugal?
O volume de imprensa especializada em música em Portugal é proporcional ao interesse geral pela música; à importância que esta, dentro do bolo das artes e da cultura popular, tem entre os portugueses; à nossa capacidade económica; e às prioridades que estabelecemos em termos de gastos correntes.
Mais do que o que acima fica escrito, embora ligado ao que acima fica escrito, o que mais prejudica/ condiciona a forma como se faz crítica musical em Portugal é a pequenez do país; a sua condição periférica; o seu conservadorismo/ puritanismo; o seu voluntário, lúcido e deliberado afunilamento de opções; a sua ânsia de um dia fazer lá fora o que não lhe apetece fazer cá dentro. A escrita crítica vive no mesmo país dos críticos, dos ouvintes, dos leitores, dos músicos, dos não-ouvintes, dos não-leitores – o edifício é comum. E depois há, felizmente, as excepções.
12 - Acha que o exercício da crítica musical em Portugal tem perdido qualidade ao longo do tempo e em especial nos últimos anos?
O exercício de crítica musical em Portugal, no seu todo, sobretudo nos últimos dez anos (efeitos da Internet; da generalização do acesso a publicações musicais estrangeiras, sobretudo inglesas e americanas; e do sucesso de infiltração entre novas gerações de leitores de jornais de informação geral atentos à cultura popular como o Público e o Diário de Notícias), melhorou consistentemente. Houve um efeito de nivelamento/ normalização/ «profissionalização» que a deixa, no geral, num patamar ligeira mas claramente superior à que era feita no fim dos anos 1970 e nos anos 1980. Mas também perdeu alguns grandes teóricos e muitas vozes únicas, literárias, que arriscavam com paixão e saber por músicas novas e pelas 1001 formas de moldar palavras a partir da música. Perdeu essas pessoas e perdeu-se o espaço para desenvolver trabalhos desse fôlego.
13 - Diz que a crítica que é feita hoje é ligeiramente superior à que era feita nas décadas de 70 e 80. Fiz alguma pesquisa e percebi que nesta altura existiam imensas publicações algumas até que duraram pouquíssimo tempo. Acha que a crítica era encarada de outra forma, sendo-lhe dada mais importância do que é hoje?
Sim, a crítica (mas também a matéria noticiosa; enfim, o jornalismo clássico todo) tinha uma importância infinitamente superior na era pré-Internet, porque a crítica cumpria quase sempre o papel duplo de análise qualitativa e porta de revelação da música sobre a qual se escrevia. Por outras palavras: todos os que gostavam activamente de música e chegaram à adolescência antes de 1995 começavam por travar conhecimento com muitos discos e grupos através do que sobre eles se escrevia nos jornais e nas revistas. Eram muitas vezes os textos que despertavam a curiosidade para ir atrás de música. De 95 para cá, e sobretudo nos últimos seis, sete anos, com a generalização do formato mp3 e respectivo acesso «gratuito», esse circuito de descoberta de sons através de textos deixou de ser o-processo-normal. Sem esquecer que se faz muitíssimo mais música hoje em dia do que nos anos 1970 e 80, o que obriga a uma mudança na natureza da filtragem jornalística e crítica de uma publicação que lide com música. Essa mudança de filtragem tem seguido quase sempre o caminho da especialização dos jornais e revistas em estilos musicais ou faixas etárias muitos específicas, o que, paradoxalmente, contraria a tendência corrente para hábitos de audição cada vez mais transversais.
Mas, ligado a estes fenómenos tecnológicos e sociais, há outros factores para o diluir da importância da crítica. Como o excesso de oferta (pseudo-)crítica. Feita em textos microscópicos que proíbem o desenvolvimento de um único fio argumentativo, isto é, matando à nascença qualquer intuito crítico da prosa. Textos microscópicos que frequentemente servem apenas de mancha gráfica de suporte à classificação (em estrelas ou em números) e à capa do disco.
Muitas vezes por culpa própria, por inépcia na adaptação aos tempos, a crítica está a perder, a velocidade vertiginosa, a sua razão de existir: o seu papel de filtro; a mistura de rigor, criatividade, conhecimento e investimento afectivo que pode conferir-lhe influência, autoridade intelectual. Se não der ao leitor motivos para o estabelecimento de empatia, se nada de fresco ou entusiasmante ou agitador ou articulado lhe proporcionar, nunca poderá receber em troca atenção ou fidelidade.
14 - Refere que “houve um efeito de nivelamento/ normalização/ «profissionalização» que a [crítica] deixa, no geral, num patamar ligeira mas claramente superior à que era feita no fim dos anos 1970 e nos anos 1980”. Durante muito tempo, a crítica era produzida por pessoas que entravam para a área apenas por gostarem de música. Que importância pensa que tem a profissionalização?
Por um lado, diria que a profissionalização da crítica musical não tem importância alguma. O «apenas por gostarem de música» que mencionas é tão simplesmente a peça nuclear de tudo isto. Topa-se muito facilmente quando um artigo crítico «profissional» sobre música é feito por alguém que tem o «profissionalismo» jornalístico num patamar claramente superior ao envolvimento e à estima pela matéria musical – é um desnível que cria um ruído na comunicação que acaba por empobrecê-la significativamente. Sem uma afinidade (quase que lhe chamava «investimento emocional», mas é uma expressão demasiado armadilhada) pessoal prévia com o universo sobre o qual se escreve, não há profissionalização que valha.
Todavia, e por outro lado, a profissionalização (jornalística) da crítica ajuda na consciencialização de que o conhecimento e um domínio razoável da linguagem jornalística são muito importantes quando se trata de textos que também são gestos de comunicação.
15 – Há alguma coisa que considera que deve mesmo ser mudada ao nível da crítica musical no nosso país?
Quem faz crítica musical devia ouvir menos música só para registar mentalmente que ouviu música. Devia ouvir música melhor. Devia ser menos reverente em relação ao passado. Devia ler mais sobre música. Devia ler mais sobre/ envolver-se mais no que nos rodeia (socialmente, politicamente, culturalmente) que não é música mas que tem tudo a ver com música. Devia ter menos medo. Devia ter mais recursos lexicais. Devia ter mais imaginação. Devia ser mais jornalística e, ao mesmo tempo, menos funcional. Devia ser simultaneamente mais subjectiva e objectiva. Devia ouvir música nova mais e melhor. Devia pensar a música portuguesa mais e melhor.
Com a devida autorização, aqui está, na íntegra, a minha entrevista:
1 - Há quanto tempo trabalha em crítica musical na imprensa?
Desde 1995.
2 - Antes disso, qual foi o seu percurso, profissional e académico?
O meu percurso profissional começou em simultâneo com o percurso na crítica musical em imprensa – Blitz, Fevereiro de 1995. Em termos académicos, e após a conclusão do 12º ano, frequentei os quatro anos do curso de Comunicação Social da Escola Superior de Jornalismo, no Porto – de 1989/1990 a 1992/1993. Deste curso obtive o grau de licenciatura em jornalismo internacional, com uma tese sobre a imprensa partidária minoritária no Portugal do PREC (i.e., de 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975). A tese foi apresentada em Fevereiro de 1995 e rendeu-me uns tolerantes e generosos 14 valores.
3 - Que bases lhe deu esse percurso?
Não compreendo bem a questão: perguntas-me que bases me deu o meu percurso académico, ou que bases me deu o meu percurso profissional até agora, ou ambas as coisas?
4 - De facto, a pergunta é que bases lhe deram ambos os percursos.
O que de mais relevante o curso de Jornalismo me deu foi um esqueleto teórico e prático sobre os alicerces «genéticos» do ramo, tanto em termos de imprensa (fotojornalismo incluído) como de rádio e de televisão. Havia também uma série de cadeiras menos directamente ligadas à prática jornalística mas potencialmente importantes em termos de fornecimento de e estímulo para diversas matérias que se cruzam com esta actividade (informática, estatística, gramática, sociologia, psicologia, semiótica, história, etc.). O interesse e a relevância destas cadeiras variava, naturalmente, conforme os interesses de cada candidato a jornalista e, sobretudo, com as virtudes e defeitos comunicacionais dos respectivos professores.
O que de mais relevante me deu o percurso profissional até agora foi o enormíssimo privilégio de o poder desenvolver precisamente nas áreas artísticas e jornalísticas de que mais gosto, e com o maior grau de liberdade crítica (ou, em termos mais latos, de liberdade de expressão) que é possível pedir em meios de comunicação social de massas. Incluindo a possibilidade de confrontar e trocar ideias e conversar com criadores artísticos. E, já agora, as viagens de trabalho ao estrangeiro – uma mudança regular de ares, o contacto com outras realidades, são absolutamente cruciais para quem faz jornalismo (ou carpintaria, ou contabilidade, ou…) em Portugal. Mesmo que sejam viagens de ida e volta em 24 horas. Se não fosse tão dispendiosa, creio que devia ser obrigatória em todos os cursos a existência de uma cadeira de, sei lá, Incursões Internacionais. É o tipo de coisa que a Internet, por muito larga que seja a janela que abre para o mundo, não substitui.
5 - Que etapas percorre normalmente para a construção de uma crítica?
No caso de uma crítica discográfica, a etapa que vale quase tudo é escutar o disco. É absolutamente essencial escutá-lo mais do que uma vez antes de concluir a prosa crítica. A quantidade de vezes que se ouve um disco, o volume de atenção que se lhe pode dedicar, está condicionado pelo que o restante trabalho em carteira autoriza em termos temporais. Neste sentido, duas audições podem chegar para desenrascar um texto mais ou menos digno se se estiver a lidar com um disco que exista num quadro estético que já seja familiar ao crítico. Todavia, e regra geral, três a quatro audições é um volume mais adequado para obter o grau de familiaridade com o objecto sonoro necessário para dele retirar uma crítica convincente.
Ter em atenção as letras (quando existem, claro) impressas ou somente entoadas também é importante e pode exigir atenção específica. Os textos complementares incluídos no objecto disco (i.e., no livreto) e o ambiente gráfico em que a rodela vem embalada também devem ser tidos em conta na absorção crítica geral.
6 - Faz muita pesquisa para produzir a crítica?
Idealmente, se o tempo e a disponibilidade económica o permitirem, a audição de discos anteriores do artista/grupo sobre o qual se está debruçar, e/ou a audição de discos que existam no mesmo comprimento de onda temporal/sonoro, podem ser actos importantes para efeitos de contextualização. Quanto à leitura de textos complementares, a quantidade depende, mais uma vez, se se estiver ou não a lidar com um disco que exista num quadro estético que já seja familiar ao crítico.
6 - Em que tipo de material se apoia para produzi-la?
Para produzir a crítica discográfica ou para produzir a pesquisa?
7 - Para produzir a crítica discográfica. Mas penso que esta pergunta acaba por se tornar um pouco repetitiva. Assim, o que é realmente importante saber aqui é: Que peso tem o factor Internet, como material para produzir a crítica?
Tem um peso primordial quando se procuram dados para contextualizar a matéria sobre a qual se trabalha. Nada se lhe compara nesse campo. Mas, por muito profissional e completo que seja, e no campo da crítica musical, não há esforço de contextualização que substitua ou se sobreponha à audição atenta e sistemática e cúmplice do objecto musical que nos calhou em trabalho.
8 - Eu estava a lembrar-me, por exemplo, da crítica que fez ao último álbum do Moby, em que fez também entrevista. O que é que retira daí? Retira alguma coisa que aproveita para a crítica?
Das entrevistas com os criadores da música (sobretudo quando elas acontecem pessoalmente, se bem que o mesmo possa aplicar-se a entrevistas telefónicas e por e-mail) abre-se sempre uma janela para um conhecimento dos mecanismos internos (biológicos?) de discos e canções a que, de outra forma, dificilmente se teria acesso. Tanto pelo que o artista diz e como o diz, como pelo que fica por dizer.
9 - Utiliza os press releases enviados pelas editoras? (Se não os utiliza, porquê?)
É uma decisão sem regra universal. Por norma, creio que não os utilizo, mas eles podem ser úteis e/ou importantes se forem a – apresentarem dados biográficos e/ou técnicos de uma forma clara e concisa, ou b – se consistirem de um ensaio crítico-literário produzido por alguém que tenha elevada intimidade com o artista/grupo em questão.
10 - Que peso têm esses press releases na produção da crítica?
Em média, têm um peso muito baixo. Mas é um território de oscilações muito grandes.
11 - Disse que em média os press releases têm um peso muito baixo na produção da crítica, mas que isto é um território com muitas oscilações. O que quis dizer com isto exactamente?
Sobretudo, quis dizer que os press releases podem ser mais ou menos úteis em termos informativos conforme o nosso grau de conhecimento prévio e relação ao estamos a analisar. Por exemplo: um press release sobre o primeiro álbum da banda x, pouco conhecida, poder-me-á ser muito mais útil do que um press release a acompanhar o novo álbum dos Pet Shop Boys, de quem possuo toda a discografia e sobre os quais já escrevi diversas vezes e sobre os quais leio com regularidade.
O mesmo sucede com a modalidade dos press releases em formato de ensaio literário, «de autor», mas aqui a variação tem tudo a ver com as virtudes de escrita de quem os produz. Neste campo, há textos cuja esperança de vida transcende por completo a relevância temporalmente limitada de um press release informativo «clássico»; ou que adquirem vida própria, exterior à música que os motivou. É o caso do texto do jornalista britânico Paul Morley que acompanhou, há poucos anos, as reedições de diversos álbuns dos anos 1970 de Brian Eno. Ou do texto do jornalista Pedro Gonçalves, feito para o novo álbum do projecto A Naifa (neste caso, o texto divulgado em press release era, na verdade, um texto incluído no livreto do álbum – uma prática também corrente).
11 - Muitas vezes a crítica pode ser subjectiva. Que cuidados tem na sua redacção?
Uma das definições para «subjectivo» encontradas no Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora, 8ª edição) refere algo «que pertence ao sujeito enquanto ser consciente». Uma das definições de «objectivo» encontradas no mesmo dicionário refere-se a algo «que existe fora do espírito e independentemente do conhecimento que dele possua o sujeito pensante». Assim, uma crítica é sempre (ou devia ser sempre…) subjectiva e objectiva.
Desta forma, os cuidados que tenho na sua redacção passam por, à partida em simultâneo e numa relação de forças variável texto a texto: extrapolar uma tentativa de obra de arte (escrita) a partir de uma obra de arte (sonora); contextualizar/ perceber o disco e o(s) autor(es) no mundo artístico, social, político, mediático que o rodeia; aplicar ferramentas jornalísticas básicas (o quê, quem, quando, onde, como, porquê).
Mas o cuidado principal é este: ser intelectual e emocionalmente honesto, e perceber que se está a trabalhar numa fascinante zona cinzenta entre a arte e o jornalismo, onde (para voltar às definições de dicionário) a experiência pessoal de um ser consciente se atravessa no caminho de um objecto que existe independentemente do nosso conhecimento.
10 - Alguma vez sofreu de algum tipo de pressão por parte de alguma editora para fazer a crítica de um trabalho?
Essas ocorrências são comuns e geralmente não têm o carácter intrusivo e «violento» implícito à palavra «pressão». Chamar-lhe-ia mais «pedidos» (para escrever críticas positivas, evidentemente; quando muito, não-negativas). É a responsabilidade jornalística e a honestidade de cada um (jornalistas, editores, directores) que responde nessas alturas. Se se entender que o disco usado como pretexto para os «pedidos» das editoras justifica uma crítica, ela faz-se. Se não o justifica, não se faz.
De qualquer forma, não é nas críticas que esse tipo de «pedidos» ocorre com mais frequência. As críticas têm um destaque e ocupam uma área de papel impresso muito inferior a um artigo de fundo ou a uma entrevista ou a uma capa. É nesses terrenos mais vistosos que os «pedidos» (e, aqui sim, as pressões) quase sempre ocorrem.
11 - No caso português, existe pouca imprensa especializada apenas em música. Pensa que isso prejudica a forma como a crítica é concebida em Portugal?
O volume de imprensa especializada em música em Portugal é proporcional ao interesse geral pela música; à importância que esta, dentro do bolo das artes e da cultura popular, tem entre os portugueses; à nossa capacidade económica; e às prioridades que estabelecemos em termos de gastos correntes.
Mais do que o que acima fica escrito, embora ligado ao que acima fica escrito, o que mais prejudica/ condiciona a forma como se faz crítica musical em Portugal é a pequenez do país; a sua condição periférica; o seu conservadorismo/ puritanismo; o seu voluntário, lúcido e deliberado afunilamento de opções; a sua ânsia de um dia fazer lá fora o que não lhe apetece fazer cá dentro. A escrita crítica vive no mesmo país dos críticos, dos ouvintes, dos leitores, dos músicos, dos não-ouvintes, dos não-leitores – o edifício é comum. E depois há, felizmente, as excepções.
12 - Acha que o exercício da crítica musical em Portugal tem perdido qualidade ao longo do tempo e em especial nos últimos anos?
O exercício de crítica musical em Portugal, no seu todo, sobretudo nos últimos dez anos (efeitos da Internet; da generalização do acesso a publicações musicais estrangeiras, sobretudo inglesas e americanas; e do sucesso de infiltração entre novas gerações de leitores de jornais de informação geral atentos à cultura popular como o Público e o Diário de Notícias), melhorou consistentemente. Houve um efeito de nivelamento/ normalização/ «profissionalização» que a deixa, no geral, num patamar ligeira mas claramente superior à que era feita no fim dos anos 1970 e nos anos 1980. Mas também perdeu alguns grandes teóricos e muitas vozes únicas, literárias, que arriscavam com paixão e saber por músicas novas e pelas 1001 formas de moldar palavras a partir da música. Perdeu essas pessoas e perdeu-se o espaço para desenvolver trabalhos desse fôlego.
13 - Diz que a crítica que é feita hoje é ligeiramente superior à que era feita nas décadas de 70 e 80. Fiz alguma pesquisa e percebi que nesta altura existiam imensas publicações algumas até que duraram pouquíssimo tempo. Acha que a crítica era encarada de outra forma, sendo-lhe dada mais importância do que é hoje?
Sim, a crítica (mas também a matéria noticiosa; enfim, o jornalismo clássico todo) tinha uma importância infinitamente superior na era pré-Internet, porque a crítica cumpria quase sempre o papel duplo de análise qualitativa e porta de revelação da música sobre a qual se escrevia. Por outras palavras: todos os que gostavam activamente de música e chegaram à adolescência antes de 1995 começavam por travar conhecimento com muitos discos e grupos através do que sobre eles se escrevia nos jornais e nas revistas. Eram muitas vezes os textos que despertavam a curiosidade para ir atrás de música. De 95 para cá, e sobretudo nos últimos seis, sete anos, com a generalização do formato mp3 e respectivo acesso «gratuito», esse circuito de descoberta de sons através de textos deixou de ser o-processo-normal. Sem esquecer que se faz muitíssimo mais música hoje em dia do que nos anos 1970 e 80, o que obriga a uma mudança na natureza da filtragem jornalística e crítica de uma publicação que lide com música. Essa mudança de filtragem tem seguido quase sempre o caminho da especialização dos jornais e revistas em estilos musicais ou faixas etárias muitos específicas, o que, paradoxalmente, contraria a tendência corrente para hábitos de audição cada vez mais transversais.
Mas, ligado a estes fenómenos tecnológicos e sociais, há outros factores para o diluir da importância da crítica. Como o excesso de oferta (pseudo-)crítica. Feita em textos microscópicos que proíbem o desenvolvimento de um único fio argumentativo, isto é, matando à nascença qualquer intuito crítico da prosa. Textos microscópicos que frequentemente servem apenas de mancha gráfica de suporte à classificação (em estrelas ou em números) e à capa do disco.
Muitas vezes por culpa própria, por inépcia na adaptação aos tempos, a crítica está a perder, a velocidade vertiginosa, a sua razão de existir: o seu papel de filtro; a mistura de rigor, criatividade, conhecimento e investimento afectivo que pode conferir-lhe influência, autoridade intelectual. Se não der ao leitor motivos para o estabelecimento de empatia, se nada de fresco ou entusiasmante ou agitador ou articulado lhe proporcionar, nunca poderá receber em troca atenção ou fidelidade.
14 - Refere que “houve um efeito de nivelamento/ normalização/ «profissionalização» que a [crítica] deixa, no geral, num patamar ligeira mas claramente superior à que era feita no fim dos anos 1970 e nos anos 1980”. Durante muito tempo, a crítica era produzida por pessoas que entravam para a área apenas por gostarem de música. Que importância pensa que tem a profissionalização?
Por um lado, diria que a profissionalização da crítica musical não tem importância alguma. O «apenas por gostarem de música» que mencionas é tão simplesmente a peça nuclear de tudo isto. Topa-se muito facilmente quando um artigo crítico «profissional» sobre música é feito por alguém que tem o «profissionalismo» jornalístico num patamar claramente superior ao envolvimento e à estima pela matéria musical – é um desnível que cria um ruído na comunicação que acaba por empobrecê-la significativamente. Sem uma afinidade (quase que lhe chamava «investimento emocional», mas é uma expressão demasiado armadilhada) pessoal prévia com o universo sobre o qual se escreve, não há profissionalização que valha.
Todavia, e por outro lado, a profissionalização (jornalística) da crítica ajuda na consciencialização de que o conhecimento e um domínio razoável da linguagem jornalística são muito importantes quando se trata de textos que também são gestos de comunicação.
15 – Há alguma coisa que considera que deve mesmo ser mudada ao nível da crítica musical no nosso país?
Quem faz crítica musical devia ouvir menos música só para registar mentalmente que ouviu música. Devia ouvir música melhor. Devia ser menos reverente em relação ao passado. Devia ler mais sobre música. Devia ler mais sobre/ envolver-se mais no que nos rodeia (socialmente, politicamente, culturalmente) que não é música mas que tem tudo a ver com música. Devia ter menos medo. Devia ter mais recursos lexicais. Devia ter mais imaginação. Devia ser mais jornalística e, ao mesmo tempo, menos funcional. Devia ser simultaneamente mais subjectiva e objectiva. Devia ouvir música nova mais e melhor. Devia pensar a música portuguesa mais e melhor.
Comentários
Menos zapping musical. O zapping musical mata, se não a música, pelo menos o valor que a música pode ter.
"Uma crítica é sempre...objectiva" porque faz a apreciação de um objecto????
Qualquer juízo de valor depende de quem o faz.
Há parâmetros, ditos objectivos, que ditam a qualidade de um disco?
Eu sempre pensei que não. Caso contrário, o pandora.com funcionava, e gostávamos de tudo o que era parecido com o que gostamos!
Não percebo como é possível o gosto pessoal ou estado de espírito não interfirir na avaliação de um disco ou concerto.
Se calhar, é por isso que nunca poderia ser crítica.
Naturalmente, agradeço a referência ao texto sobre A Naifa, que sem modéstia considero particularmente bem conseguido. Daí até partilhar a mesma resposta com o Paul Morley... errr... i'm flattered!
Grande abraço.
Aliás, O estado de espírito influencia muito mais o processo de avaliação de uma obra do que o de escrita da critica.
A confirmar que que o JML é, de facto, um dos poucos jornalistas que vale a pena sempre ler.
E fico contente por saber que, no ISCSP, não fui a única a escolher como tema de trabalho de fim de curso a área da música e/ou media.
Esse trabalho estará disponível na biblioteca da faculdade?
Lia