Mão Morta Redux
(transcrição integral da entrevista com Adolfo Luxúria Canibal, originalmente publicada na Blitz de Abril deste ano)
Porque é que sentiste necessidade de te expressares através da música? Lembras-te de algum instante em que tenhas percebido que era exactamente essa a melhor forma de dizeres alguma coisa?
Não foi nenhuma transcendência. Acho que teve muito a ver com as circunstâncias históricas do momento. A vontade de fazer música surgiu quando já estava em Lisboa como estudante universitário, quando havia ainda aquele underground punk lisboeta de 78, 79. Foi uma coisa que me interessou, uma vez que estava a seguir o que se passava, nomeadamente, em Inglaterra. Já tinha ouvido falar vagamente dos Faíscas, a primeira banda punk portuguesa, quase em simultâneo com Inglaterra, no [programa Rotação, transmitido pela Rádio Renascença e da autoria de] António Sérgio, mas quando cheguei a Lisboa já não havia Faíscas. Mas surgiram os Xutos & Pontapés, dos quais vi o primeiro concerto, o Corpo Diplomático, de quem também vi o primeiro concerto, os Aqui d’El Rock, os Minas & Armadilhas… Toda essa movida lisboeta, muito underground, muito específica, muito centrada na Avenida de Roma mas com concertos pelos liceus da capital – D. Pedro V, o António Arroio, etc. O ambiente contagiava. Aquele fenómeno que aconteceu em Inglaterra a partir dos [Sex] Pistols, dos Clash, etc., passou-se também um bocado naquele microcosmos lisboeta, e foi esse tal contágio, essa vontade de subir a um palco e apresentar uma coisa vagamente parecida com música, que me despertou o desejo de, depois, transportar isso para Braga. E em Braga as coisas aconteceram. Houve pessoas que embarcaram comigo nesse disparate de mandar uns berros e de fazer de conta que se tocava, e assim nasceram os primeiros projectos. O primeiro foi o Bang-Bang e nunca saiu da sala de ensaios. O segundo saiu; foram os AuAuFeioMau. E a partir daí a semente ficou lançada.
Quando regressaste a Braga, já contavas encontrar pessoas que partilhassem esse tipo de interesses, ou foi uma surpresa para ti quando percebeste que havia mais pessoas que queriam embarcar nisso?
Não foi propriamente uma surpresa porque estou com um pé em duas gerações. Uma geração mais velha que fez o 25 de Abril, que esteve nas noites quentes da revolução e com quem partilhei muitas coisas e aprendi muito, mas que era mais velha e eu sentia que não iria alinhar nisso [de formar uma banda inspirada pelo punk], pelo menos maioritariamente – como não alinhou; só o fez bastante mais tarde, até porque não estava virada para o rock mas sim para o jazz, para o free, etc. Portanto, sabia que dali não podia contar com nada. Mas também havia uma geração emergente, de pessoas mais novas do que eu, amigos e colegas do meu irmão, que também estava atenta às coisas que se passavam, e foi com essas pessoas que sentia que poderia avançar, e foi efectivamente com elas que avancei.
Qual é a diferença de idades entre ti e o teu irmão?
Não chega a quatro anos.
Numa canção dos Mão Morta, mencionas que, por alturas do 25 de Abril de 1974, estavas…
“Demasiado entretido a crescer para saber o que é que estava a acontecer”.
De qualquer forma, tinhas pelo menos a consciência do que estava em causa e de quem estava envolvido.
Sim. Quando surgiu o 25 de Abril de 1974 eu tinha 14 anos. Era um adolescente, e passei toda a rebeldia da adolescência juntamente com a rebeldia social que foi o pós-25 de Abril. Confunde-se o individual com o colectivo. Nesse aspecto, considero que fui um privilegiado. Mas não tendo no 25 de Abril uma consciência aguda do que é que estava em jogo; do que é que era – para falarmos em termos mais simples – a esquerda e a direita; o que é certo é que a época proporcionava uma aprendizagem rapidíssima de uma data de coisas, o que me fez, dentro do panorama social, juntar aos rebeldes, à extrema esquerda. Foi uma aprendizagem com muitas leituras, que era uma coisa comum a toda a gente, que aprendeu imenso sobre teoria política e história política nessa época, de autores de um lado estritamente político, de autores literários, sobre pintura, sobre movimentos contestatários, situacionistas, surrealistas, dadaístas, etc… Foi uma onda gigantesca de informação que foi reciclada, bem ou mal, com mais profundidade, com mais superficialidade, mas a uma grande velocidade. Rapidamente fui percebendo o que me interessava ou não. Fiz o meu percurso. Estive com trotskistas, com anarquistas, fui escolhendo até encontrar a minha própria leitura e o meu estar face à política.
Ao transpores o frenesim musical que encontraste em Lisboa para um lugar bastante mais pequeno, encaravas como um estímulo o facto de estares a movimentar-te num meio com tradições bastante mais conservadoras, logo tendencialmente mais resistente e mais passível de ficar chocado com aquilo que vocês pudessem fazer?
Os meios não se misturavam muito. Ponhamos as coisas no seu devido lugar: quando eu falo do punk lisboeta, estou a falar de um microcosmos, de um underground muito específico que movimentava, no total… se movimentasse 500 pessoas já era muita gente, mas penso que movimentava muito menos do que isso. Em Braga havia um núcleo de pessoas que estava perfeitamente afastado da Braga das famílias, dessa Braga ligada à igreja e ao poder estabelecido, ligada à tradição e à resistência contra a inovação. Fora dessa Braga estratificada havia uma data de pessoas, uma data de jovens: uns mais velhos que regressavam à cidade depois de terem estado refugiados no estrangeiro ou de terem andado a estudar no Porto ou em Coimbra, onde apanharam movimentos estudantis; outros que estavam ainda nas universidades e que vinham amiúde a Braga; e outros que estavam nos liceus mas que já cresciam num novo ambiente mais aberto e a quem interessava esse lado mais radical, de procura de novas experiências. Havia, portanto, um terreno fértil neste meio reduzido para que as coisas acontecessem. A ideia não era de confronto com a cidade bracarense; havia era uma ideia de partilha, com estas pessoas, para criar coisas, e que funcionava perfeitamente à margem da Braga tradicional, tal como a cena punk em Lisboa funcionava à parte da Lisboa tradicional.
Quando eras miúdo, tinhas lá por casa muitos discos dos teus pais que costumasses ouvir?
Não. Eu vivi quase sempre em Vieira do Minho até aos 11 anos, e lá não havia sequer um gira-discos; havia um daqueles antigos pick-ups em mono, em que a coluna era a própria tampa do gira-discos. As raras vezes em que ouvi discos a tocar nesse aparelho foram discos do Zeca Afonso que eram da minha mãe. O Zeca Afonso foi colega dela em Coimbra, e ela era madrinha do filho mais velho dele. Eram pessoas próximas, e ela tinha todos os primeiros EPs de quatro faixas do Zeca Afonso, que depois formaram o primeiro álbum dele, Baladas e Canções [de 1964]. Penso que eles eram ouvidos um bocado em surdina, porque na altura o Zeca Afonso já estava proibido, e algumas dessas canções estavam mesmo proibidas de ser tocadas. Depois, só volto a ouvir música quando já estou em Braga. Comecei a relacionar-me com colegas, e havia alguma curiosidade à volta da música pop, sobretudo dos hits anglo-saxónicos, nomeadamente nos bailes de adolescentes no liceu e etc. Foi só aí, sensivelmente aos 12 anos, que o meu contacto com a música começou.
Eras frequentador de bailes de adolescentes?
Eram bailes de amigos, de turma, onde tive as primeiras namoradas. Não eram bailes públicos… havia uma festa de anos, convidavam-se os amigos e fazia-se um baile.
Há gravações das tuas bandas pré-Mão Morta?
Dos Bang-Bang não há nada. Dos AuAuFeioMau havia pelo menos uma cassete, que foi uma maqueta que se apresentou na altura à Valentim de Carvalho e foi recusada, e penso que havia uma outra coisa qualquer gravada ao vivo. Mas tirando essa coisa ao vivo, com duas ou três canções que tinham a minha voz, a maqueta foi gravada quando eu estava em Lisboa, de maneira que era o baixista que cantava.
E dos PVT Industrial [de 1984, formada pelo mesmo trio que, nesse ano, deu à luz os Mão Morta: Adolfo, Joaquim Pinto e Miguel Pedro]?
Dos PVT Industrial não há nada gravado.
A que soavam essas bandas? Nos relatos dos primeiros tempos dos Mão Morta, há referências recorrentes ao rock industrial dos Swans.
Nos PVT Industrial havia [influência da música industrial], como o próprio nome indica. A instrumentação era muito à base de gravações de teares, com ruído em cima. A ideia era muito industrial, muito radical. Os Mão Morta recuperaram um dos temas dos PVT Industrial, o “B(r)osh É Bom”, que saiu numa pequena colectânea de uma revista que já não existe, a Entulho Sonoro. Era um dos temas de charneira dos PVT Industrial. O outro tema de charneira era uma versão traduzida para português do “Frankie Teardrop” dos Suicide. Os AuAuFeioMau tinham uma especificidade melódica que vinha muito da guitarra do Zé dos Eclipses; era um som de guitarra muito particular, muito subjectivo, muito característico dele. Mas o ambiente geral tinha a ver com a onda Joy Division, de Manchester, urbano-depressiva. Os Bang-Bang não tinham propriamente uma linha. Eram muito punk porque muito primitivo, muito mal tocado, ainda a arranhar as coisas a ver o que saía. Mas não era punk por estética, não era a fórmula Ramones revista pelo olho inglês; era uma coisa imberbe, para todos os efeitos [risos].
Era punk por necessidade…
Era punk por defeito.
O primeiro álbum dos Mão Morta saiu em 88 pela Ama Romanta. A associação a essa editora andou colada ao grupo durante os primeiros anos, não foi?
Sim. Houve duas coisas que se colaram ao grupo. Uma foi o III Concurso do Rock Rendez-Vous [em 1986], em que ganhámos o Prémio da Originalidade, e que no ano anterior tinha sido ganho pelos Pop Dell’ Arte. Depois foi essa associação à Ama Romanta, que também tinha a ver com o facto de vivermos na altura, tanto eu como o João Peste e a maior parte dos Pop Dell’ Arte, em Campo de Ourique. Houve, efectivamente, uma ligação muito forte à Ama Romanta, por lá termos gravado o primeiro disco e por termos programado o segundo também para a Ama Romanta.
Mas em termos estéticos, parecia haver uma razoável distância entre os Mão Morta e as muitas outras coisas ligadas à Ama Romanta.
A Ama Romanta não tinha propriamente uma linha estética fixa. Havia uma grande abertura a esse nível. Procurava coisas que não fossem comerciais, que tivessem algo a dizer que fosse pertinente em termos musicais, mas não tinha uma linha bem definida. Tinha coisas mais pop, como os Mler Ife Dada; tinha coisas mais experimentais, como os próprios Pop Dell’ Arte; tinha coisas mais rock, como os Mão Morta; tinha coisas mais electrónicas, como Tó Zé Ferreira, por exemplo; tinha coisas mais jazzísticas, como o Sei Miguel… A linha variava muito mas, efectivamente, não havia uma grande proximidade estética entre o que os Mão Morta faziam e fazem, e o que os Pop Dell’ Arte faziam ou fazem.
Porque é que o disco seguinte, Corações Felpudos, acabou por não sair pela Ama Romanta?
Na altura isso deu uma grande celeuma. Basicamente, foi por desentendimentos. Havia três partes envolvidas: o nosso manager na época, o Vítor Silva, a Ama Romanta-João Peste, e Mão Morta, nomeadamente eu. Houve coisas que começaram a não ser cumpridas e acabaram por cair em cima da Ama Romanta, que era o elo mais fraco, pois tinha de avançar com algum dinheiro para pagar algumas coisas e não avançou. Nós tivemos que cobrir esse “avanço”, e já que estávamos a cobrir uma das partes, então não precisávamos dela. Portanto, seguimos [sem a Ama Romanta].
Outro acontecimento da época que passou para a “mitologia” do rock português foi a tua cena do corte com a faca no Rock Rendez-Vous em 89 [Adolfo golpeou-se numa perna em pleno concerto, para desmantelar o ambiente pesado na sala; o corte foi mais vigoroso e a sangria mais abundante do que o pretendido]. Essa “mitologização” também ocorreu porque isso não era coisa que acontecesse em concertos rock por estas bandas.
Não acontecia, nem acontece [risos]. Penso que o choque foi mais a posteriori. Foi de tal maneira absurdo e impensável que nem criou ondas de choque naquele momento… tirando as pessoas que viram sangue e desmaiaram durante o concerto. O choque só começou a surgir passado um ano, e só nessa altura é que se foi gerando a mitologia à volta desse acontecimento. No imediato, ficou tudo sem palavras. Ficou aquele buraco de silêncio que acontece no olho do furacão.
À época, e sobretudo por comparação com o álbum de estreia, o Corações Felpudos deixou-me ligeiramente desapontado. Como é que ele se encaixa no percurso da banda?
O Corações Felpudos tem duas características. Por um lado, é um disco que aproxima muito mais os Mão Morta de uma das bandas anteriores, os AuAuFeioMau, levado em parte pela preponderância que o Zé dos Eclipses tem nesse disco. Por outro lado, é um disco de transição em termos internos. Havia problemas graves de consumo de heroína no seio da banda, e [este período] correspondeu ao desinteresse e ao apagamento da principal referência dos Mão Morta até aí, o Joaquim Pinto, que tinha sido o fundador da banda. Foi um disco em que nós seguimos para estúdio sem nada preparado, numas de fazer tudo lá. Estivemos três dias em estúdio, saímos de lá com três ou quatro interlúdios, e decidimos cancelar tudo. Só voltámos [para estúdio] passados uns meses, aí já com as coisas mais estruturadas. É um disco assim um bocado aéreo, mas que eu considero um dos melhores discos dos Mão Morta.
Costumas reescutar, anos depois, os discos que fazes?
Não tenho esse hábito. Ouço-os muito raramente quando, por qualquer motivo, sou obrigado a ir buscar qualquer coisa, e normalmente fico agradado com o que ouço. Porque já não me lembrava, já não sabia como é que era, o que é que tinha ficado, porque é que a estrutura era assim… Normalmente é uma surpresa para mim.
Nessas raras vezes em que os ouves, acontece encontrares fios narrativos ou outras coisas de que nunca te havias apercebido?
Não, as surpresas são mais a redescoberta dos fios narrativos que na altura tinham sido criados e que eu entretanto perdera por completo.
Quem ainda mantém uma frescura surpreendente é o álbum seguinte, O.D., Rainha do Rock & Crawl, de 1991. Mais um disco que voltou a ter percalços com a edição e distribuição.
Foi um disco mais barato, feito num sítio mais em conta, depois de termos gravado os dois primeiros álbuns na Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, cujos estúdios eram tidos, na altura, como a grande referência. Fomos para o Tcha-Tcha-Tcha, que era um estúdio mais caseiro. Foi um álbum de aproveitamento do momento. Tínhamos a Área Total, uma editora nova que queria editar o Corações Felpudos mas não tinha dinheiro para cobrir o preço que nós pedíamos, e que nos convidou para fazer um outro disco. Nós aceitámos um bocado contra o Vítor Silva, que torcia o nariz – “Ainda nem sequer editámos este [Corações Felpudos] e já estão a avançar para outro. Acho um absurdo.” Mas nós insistimos. Quando fomos para estúdio tínhamos três temas, depois fizemos uma versão completamente diferente de uma canção mais antiga, “Bófia”, inventámos um tema no estúdio, o “Quero Morder-te as Mãos”, um tema estruturado, e também inventámos uma brincadeira em estúdio, o “Divino Marquês”, para a qual já tinha escrito a letra, mas que estava longe de… Foi a partir da letra que toda a música foi estruturada em estúdio, e foi uma experiência tipicamente de estúdio, uma vez que começámos de uma base em que todos tocávamos em simultâneo e todos nos ouvíamos, e a partir de determinado momento cortámos as ligações internas, e as pessoas continuaram a desenvolver essa base, no pressuposto que estavam a fazer exactamente a mesma coisa, no mesmo temo, mas sem qualquer referência; o tempo começou a descambar para cada um, e isso correspondia ao crescendo do texto. O resultado final acaba por ser interessante porque esse perder subtil do tempo, em progressão, acaba por ter a ver com a progressão da própria história.
Ou seja, o “Divino Marquês” que se ouve em disco corresponde ao único take que fizeram da canção.
Exactamente.
Mutantes S.21 vem logo a seguir, em 92, e completa uma sequência de quatro álbuns em cinco anos. É o primeiro disco dos Mão Morta com uma estrutura conceptual claríssima.
Sim. Já tínhamos aflorado [o lado conceptual] no O.D., onde tudo rodava à volta de uma ideia de heróis, mas ainda muito imberbe, mas o Mutantes é que foi efectivamente o primeiro álbum pensado de raiz como conceptual. Foi um disco que deu trabalho. Foi escrito de uma forma relativamente diferente do que fazemos hoje, ou seja, todas as letras foram escritas à partida e depois, basicamente, o [guitarrista] Carlos Fortes trabalhou essas letras em termos musicais, segundo indicações que lhe ia dando sobre as cidades, sobre o que estava em causa em termos musicais nessas cidades. O álbum foi todo elaborado na sala de ensaios antes de ir para estúdio, e mesmo aí também foi muito trabalhado. Foi uma coisa de outro fôlego. E depois, contou com um belíssimo estúdio, o Angel, na altura já melhor do que os de Paços de Arcos, e com um técnico fabuloso: o José Fortes.
É um disco que culmina e remata uma primeira etapa na vida do grupo?
Retrospectivamente, é um disco que faz uma viragem, em termos de crescimento da banda e do olhar sobre nós próprios. Deu-nos um outro fôlego e uma outra liberdade; deu-nos um outro espaço de manobra dentro do panorama musical português e criou as bases dessa liberdade em que hoje nos podemos movimentar.
Foi um momento em que pensaram que isto de ter uma banda e fazer música era uma coisa mesmo a sério?
Nunca pensámos dessa maneira. Foi um disco em que tivemos de dar tudo por tudo. Tínhamos chegado ao Corações Felpudos e, com a separação da Ama Romanta, venderam-nos o disco, mas ninguém pegou nele e acabou por ser editado pelo nosso manager através da Fungui. Depois, avançámos com outro álbum para uma pequena independente da Guarda, que era um retrato do que seriam as independentes na época, e correu tudo mal: o disco acabou por sair atrasadíssimo, com problemas de capa e de rótulos, sem promoção, sem nada, os concertos começaram a rarear… Estávamos, portanto, num momento de ou vai ou racha. Ou arranjávamos uma coisa que nos fizesse sobreviver ou, pura e simplesmente, por muito amor à camisola que tivéssemos, não havia condições para continuar. Estávamos fartos disto, não tínhamos espaço de movimentação. Por isso, o Mutantes S.21 foi a aposta in extremis do Vítor Silva para criar um futuro para a banda e, nesse sentido, funcionou.
O êxito do disco apanhou-vos desprevenidos?
Sabíamos que tínhamos um bom disco, que deveria consolidar-nos no panorama português, mas não estávamos à espera que o “Budapeste” tivesse o êxito que teve e que funcionasse como cartão de visita. À partida, nem sequer pensávamos que ele alguma vez fosse single, porque era um tema demasiado longo para passar nas rádios. Além disso, nem era representativo do som da banda. É uma canção um bocado pastiche velvetiana, que tinha a ver com as tais referências de Budapeste que dera ao Carlos Fortes. Era uma cidade onde se ouvia muito rock antigo, onde se misturava Velvet Underground com música brasileira… Era um mundo novo que se abria aos húngaros, em que todo o passado ficara disponível em simultâneo e assim era consumido, sem secções, sem diferença, sem nada. E os Velvet Underground funcionavam muito bem como referência para o som da canção, porque é o que está na origem de todo o desenvolvimento da música anglo-saxónica dos anos 80 para cá. Além disso, os Velvet eram naquele momento uma referência de charneira para Budapeste.
Ao contrário dos três primeiros álbuns, que foram reeditados pela Nortesul em 1998, Mutantes S.21 ainda não teve direito a regresso aos escaparates.
Estamos a pensar em reeditar este ano os quatro primeiros discos através da Cobra. Não só dos quatro em conjunto, numa caixa, mas também individualmente. Serão remasterizados, e vão sair em edições fac-simile das edições vinílicas mas em CD, e sem extras, para sermos o mais fieis possível ao lançamento original, mas em formato reduzido – incluindo as capas. E também vai haver uma edição limitada em vinil.
Com o sucesso de Mutantes foram parar à BMG, para onde gravaram Vénus em Chamas (1994) e Mão Morta Revisitada (1995). Parecem-me ser os dois álbuns dos Mão Morta menos bem tratados pela passagem do tempo. A esta distância, são discos que te satisfazem?
Não. Também acho que são os álbuns mais fracos da discografia dos Mão Morta, e por motivos diferentes. O Vénus em Chamas foi um disco estranho a diversos níveis. De repente, estávamos rock stars e a ser tratados como tal, e levámos isso até às últimas consequências. Já tínhamos começado com a tournée do Mutantes S.21, mas ao entrarmos para uma multinacional, achámos que devíamos aproveitar e gozar aquilo enquanto durasse, porque sabíamos que não ia durar muito. Vendemos o disco [à BMG] por avanço, ou seja, recebemos o dinheiro e decidimos investir o mínimo de dinheiro possível na execução do próprio disco. Fomos para um estúdio muito barato, e como não tínhamos material nenhum alugámos o estúdio durante muito tempo. O resto do dinheiro, decidimos gastá-lo em jantaradas, em hotéis e outras coisas. Em termos de som, e apesar de termos o José Fortes (que é brilhante mas não estava sempre presente; foi mais na preparação das captações e nas misturas que ele apareceu; o resto delegava nos técnicos do estúdio), nota-se [em Vénus em Chamas] que não é um estúdio de cinco estrelas. Foi o sítio onde gravámos a nossa primeira maqueta, e agora estava todo digital, com um som muito agudo, etc. Depois, é um disco que nós fizemos directamente para CD. Tínhamos 70 minutos à nossa frente, achámos que era uma coisa interessante explorar esses 70 minutos, e explorámos, com tudo o que isso tem de negativo, ou seja, estamos para ali muitas vezes a encher chouriços. Além disso, gastámos 50% ou mais do tempo de estúdio a trabalhar uma das canções, “Velocidade Escaldante”. Todas as outras foram mais ou menos despachadas a correr. Não é por acaso que o “Velocidade Escaldante” sobressai como uma das melhores canções do CD e da discografia dos Mão Morta. Por outro lado, começaram a haver algumas dissenções internas em termos de ego, que era a primeira vez que acontecia na banda, e que tinha também a ver com a ressaca do sucesso do Mutantes S.21 e do “Budapeste”, e que acabou com a saída do Carlos Fortes. Todos esses factores fizeram com que o disco saísse completamente desequilibrado. Tem coisas muito interessantes, tem coisas muito boas, como o “Velocidade Escaldante”, e tem coisas perfeitamente dispensáveis, que são meros exercícios de preenchimento dos 70 minutos que tínhamos disponíveis.
Ficaram vacinados contra a ideia de encher CDs com 70 minutos de música.
Nunca mais pensámos nisso. Ninguém tem pachorra para ouvir 70 minutos de um disco. Foi mesmo uma situação de estar virgem em relação ao novo formato. O clássico formato do LP de 40 minutos ainda é o melhor. Quanto ao Mão Morta Revisitada: a ideia, à partida, era interessante – revisitar, com os olhos da época, músicas do passado –, mas tirando aquelas que nunca tinham sido gravadas, as outras, grosso modo, ficaram piores do que os originais; mais bem gravadas mas com menos força. Ficaram… menos interessantes, com menos urgência, menos tensão, mais moles. Esse é o defeito do disco.
Daí a necessidade do que parece ser uma volta considerável no vosso percurso, em 97, com o projecto Müller no Hotel Hessischer Hof?
Sim, o Müller… vem recompor-nos um pouco porque abre-nos novas perspectivas, novas experiências. Não precisávamos de andar depressa, precisávamos era de fugir às repetições (este disco não tinha nada a ver com o disco anterior) e, sobretudo, tentar essas coisas novas. O Müller… foi um desafio, um ai Jesus, porque não tínhamos bem a noção em que é que nos estávamos a meter. Mas avançámos, e quanto mais avançávamos, mais gostávamos do que estávamos a fazer e da angústia de que esse desafio nos estava a imbuir. E o resultado, visto hoje, parece-me perfeitamente positivo.
A partir de Müller…, fica-se com a sensação que o grupo passa a necessitar, sempre, de um forte esqueleto temático e teórico para cada disco ou espectáculo que se mete a fazer.
Essa necessidade já haveria antes, uma vez que ficámos todos [geograficamente] dispersos, ensaiámos muito pouco, trabalhámos bastante sozinhos, cada qual em seu canto, e precisamos de ter um fio condutor que nos faça todos mover na mesma direcção, apesar da separação. Isso foi-se tornando cada vez mais evidente. Além disso, o facto de criarmos a partir de referências externas à vivência do grupo e precisarmos de procurar um conceito para os discos cria o tal desafio que nos faz tremer, que origina tensão e medo, e que faz com que o material que saia disso seja muito mais interessante.
Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar Se Tornou Irrespirável, de 98, mantém ainda hoje uma frescura quase efusiva. Há já muito tempo que querias dedicar um álbum ao situacionismo?
Foi dos nossos discos mais demorados, mais demorado até do que o disco e o espectáculo do Müller…. Tinha-me esquecido dos situacionistas e do que tinha lido no pós-25 de Abril, e a necessidade de trabalhar sobre o [Guy] Debord aconteceu quando, sensivelmente em 92, li Os Comentários Sobre a Sociedade do Espectáculo, um livro que ele tinha escrito recentemente [em 1988]. Achei-o de tal maneira actual, muito mais claro do a própria A Sociedade do Espectáculo, e com uma perspectiva tão visionária sobre o mundo em que vivíamos que achei que tinha de fazer alguma coisa sobre isso. Comecei a pensar nessa altura (estamos a falar do tempo do Mutantes S.21) como é que havia de dar a volta à coisa. Em 95, salvo erro, fui para a Córsega com um caderno em branco só para escrever sobre os situacionistas, que entretanto voltei a ler; não só tudo o que já tinha lido quando tinha 14, 15, 16 anos, como também livros novos que tinham saído entretanto e que me tinham passado ao lado; arranjei as revistas todas da Internacional Situacionista; e ali na Córsega, ao fim de um mês de pacatas férias a tentar perceber o que havia de escrever, a única coisa que saiu foi o “Anjos de Pureza”. Entretanto, meteu-se pelo meio o Mão Morta Revisitada e o convite à última da hora, de hoje para amanhã, do Müller…, e aquilo sempre em pano de fundo, sem poder avançar. Até que finalmente avançou, mas num esquema completamente diferente (foi a única maneira de desbloquear), que foi o Miguel [Pedro] e o [António] Rafael começarem a escrever as músicas e eu, já em função dessas músicas concretas, escrever as respectivas letras. Depois disso, começou-se a pensar em termos estruturais, em como é que se havia de jogar com as várias análises, criando uma espécie de quadro com diversas vozes, leituras e visões, que é uma paródia à obra dos próprios Mão Morta, no papel de intérpretes dessa visão económico-social do mundo em que vivemos. Este processo final, em que tudo se desencadeou, foi relativamente rápido, mas até aí chegar foi tudo muito lento. No início, a escolha estava muito centrada no Debord, mas deixou de ser assim quando ele morreu [em 1994]. Achei de mau tom e oportunista fazer um disco sobre o Debord quando ele tinha acabado de morrer, de maneira que o disco passou a focar-se mais no situacionismo. Mas foi difícil encontrar o mecanismo para pôr em disco uma teoria tão complexa.
O que é interessante, e perturbador, é que toda aquela espiral mórbida e suicida por onde o disco segue é ainda mais actual agora do que há 11 anos.
Hoje consegue-se perceber ainda melhor, porque com o avançar do liberalismo económico as coisas tornaram-se de repente mais claras. O teatro socialista, ou pseudo-socialista, o socialismo real, caiu. O liberalismo tornou-se a ideologia vencedora e levou quase ao caos a que actualmente assistimos.
Primavera de Destroços, o primeiro álbum desta década, é também o primeiro a ter a electrónica num patamar tão destacado.
O Miguel começou a trabalhar com bases electrónicas no Müller…. Nessa altura ainda usou princípios e maquinaria muito rudimentares e falíveis, mas foi o início do seu interessar-se pela electrónica. Depois, já com melhores equipamentos, ele começou a compor a partir da electrónica para depois acrescentar os outros instrumentos, e onde isso se reflecte em força pela primeira vez é no Primavera de Destroços.
Esse recurso aos ambientes digitais vem reaparecendo nas tuas actividades extra-Mão Morta. Os Mécanosphère vão um pouco por aí, tal como as tuas coisas a solo.
Sim, mas são abordagens diferentes. O Miguel mexe muito na electrónica e na computação em estruturas de canção, criando bases ou ambientes mas tendo sempre em vista essa estrutura de canção, mas os Mécanosphère não: partem das bases do hip-hop e do dub para, com estrutura electrónica mas também juntando instrumentos acústicos, criar música industrial, onde o esqueleto de canção não existe de maneira nenhuma, onde a própria evolução do que se vai juntando e tirando é que constrói o tema, e onde o improviso é extremamente marcado.
Os Mécanosphère ainda existem?
Sim, apesar de não tocarmos há mais de seis meses. Temos um disco que estamos a construir paulatinamente, temos concertos falados para daqui a poucos meses, quando o disco for lançado, estamos a trabalhar com alguns autores anglo-saxónicos… Vamos ver o que sai.
Como te soa o Nus na memória?
Não tenho muita memória de como é que soa, mas penso que há-de soar bem. Pelo menos no que toca a mim, o Nus é uma experiência de quase catarse. Porque é um disco feito quando eu estava no estrangeiro, em Paris, com um misto de saudades não assumidas pelo que tinha deixado em Portugal (amigos, pessoas com que me relacionava, etc.), e o facto de, de repente, receber em Paris notícias da morte sucessiva de muitas dessas pessoas. Pessoas que jantavam em minha casa; com quem estava amiúde quando vivia em Lisboa; que eu conhecia de Braga e com quem me dava e que tinham andado comigo no pós-revolução. Havia uma data de memórias, de sentimento de perda misturado com as saudades, que tinham a ver com a minha geração e que precisavam de ser, de alguma forma, esconjurados. Esse Nus é um pouco isso. O livro do [Allen] Ginsberg [Uivo e Outros Poemas] foi só o mote congregador, mas outra vez um mote para as outras pessoas perceberem, melhor do que qualquer coisa que eu escrevesse, o sentido que o disco podia tomar. A partir daí, o Miguel trabalhou muito bem as músicas, e a ideia de fazer um tema progressivo como o “Gumes” surgiu dele, e a partir da estrutura que ele criou eu fiz as letras.
O que nos traz até ao recente projecto/ espectáculo/ disco/ DVD do Maldoror. Ficaste com vontade de fazer mais espectáculos cénicos depois de tanto trabalho com isto?
Agora já conseguimos começar a respirar e a estar sem o peso do Maldoror em cima. Com a saída do DVD fechámos definitivamente a porta. O espectáculo ficou em cena demasiado tempo para uma pessoa poder descansar: tive as duas primeiras apresentações em 2007, e a série seguinte de espectáculos apenas em 2008. Além dos três anos de preparação anteriores, houve ali um ano de tensão, de espada em cima do pescoço, porque estava sempre susceptível de voltar ao palco, e era um espectáculo muito desgastante, com muita marcação, muito texto. Era um terror, e quando aquilo chega ao fim, e apesar do alívio por aquilo ter acabado, a ideia é não tornar a pegar em espectáculos deste género, com este peso, tão cedo. Mas agora já começo a estar mais relaxado e a conseguir pensar numa coisa desse género.
Mas já pensas em algo de concreto?
Não, não estou a pensar nada [risos]! Já consigo é falar sobre um possível futuro espectáculo. Já não se me levantam os pêlos nem fico em estado de pânico e ansiedade, e já é possível que daqui a dez anos faça outro, ou daqui a cinco. Mas não para agora.
A que vão soar as próximas canções dos Mão Morta?
Não faço ideia. Estamos ainda numa fase de discussão, temos algumas ideias muito aéreas, mas não há nada feito. A ideia é que seja um disco mais rock, que sejam temas muito curtos, mas não temos mais nada avançado. Entretanto, conto que saia em Abril pela Cobra um novo disco com as bandas sonoras dos filmes que fizemos para a Maya Deren. Em Junho do ano passado, as Curtas de Vila do Conde convidaram-nos para uns filmes-concertos, e nós escolhemos a Maya Deren. Gravámos essa execução, a captação está razoavelmente boa apesar de ser uma gravação directa da mesa (ou seja, não é multipistas), e decidimos editá-la. A minha voz aparece, mas o grosso da coisa é instrumental. Sobrevive bem sem o acompanhamento visual porque tem bastante tensão, tem crescendos. Não é música para passar na rádio, mas sobrevive bem enquanto disco de… posso mesmo chamar-lhe rock.
O passado pesa-te, ou preferes mantê-lo a uma distância segura?
O passado não me pesa. Pesam-me mais os anos, fisicamente. Até porque não fico muito preso ao passado. Tirando o fugaz momento em Paris, o passado vai passando, ficando para trás, sem olhares nostálgicos. A ideia é olhar mais para o futuro. Gosto muito do passado, mas para descobrir coisas que outros fizeram. Gosto de ouvir música feita nos anos 60, 70, 80, 90. Ouço muito mais música feita no passado do que feita actualmente. O passado, para mim, serve como matéria para o futuro. O passado pelo passado não me diz rigorosamente nada.
Sentes o risco de uma banda, a partir de uma idade, passar a viver só para os aniversários redondos? São os 20 anos sobre o lançamento do disco x, a digressão dos 25, depois é o álbum comemorativo dos 30…
É verdade que as bandas têm tendência a comemorar os aniversários redondos, mas não é habitual as bandas durarem muitos anos. Mas, por exemplo, os Mão Morta fazem este ano 25 anos e nem nos lembrámos disso. Foi preciso uma entrevista qualquer, há meia dúzia de dias, em que perguntaram o que estávamos a pensar fazer para comemorar os nossos 25 anos. Temos muitas coisas programadas para este ano a nível de edições, mas não as programámos por serem os 25 anos.
Do que mais te orgulhas de ter feito em 25 anos de Mão Morta?
Acho que me orgulho do percurso como um todo. Acho que fizemos um bom percurso. Soubemos reagir bem aos desafios que se nos foram colocando, soubemos responder, soubemos aproveitar, e conseguimos criar um espaço que nos dá uma grande liberdade de actuação. No fundo, fazemos aquilo que mais gostamos: música. É evidente que posso citar um disco ou outro pelo qual tenha particular carinho, mas não é esse disco, isoladamente, que me dá um grande orgulho.
Tens dificuldade em recusar convites de outras bandas para colaborações? Já recusaste alguma proposta dessas por achares que aquilo não te dizia muito?
Já recusei porque não me dizia nada, porque não tinham interesse nenhum para mim mas, sobretudo, já recusei por falta de tempo. Mas tenho dificuldade em dizer que não. Parto do princípio que, se a pessoa vem ter comigo, é porque já passou uma primeira fase de ganhar coragem para o fazer. E, depois de ter ultrapassado essa fase, eu, do alto de um qualquer pedestal, dizer que não, quase como uma espécie de desprezo (porque o “não” é sempre recebido como contendo algo de desprezo), é uma coisa que me custa muito. Se as pessoas se esforçam, têm as suas coisas e têm gosto em ter uma voz, ou uma letra, ou seja o que for meu, no trabalho deles, é muito egoísmo e insensibilidade da minha parte negá-lo. Dentro do possível, tento dizer que sim.
Achas-te, por regra, pessimista?
Não, não. Também não sou optimista, mas tenho uma considerável dose de optimismo. Acredito normalmente que, quanto mais não seja por milagre, as coisas vão correr bem [risos].
Porque é que sentiste necessidade de te expressares através da música? Lembras-te de algum instante em que tenhas percebido que era exactamente essa a melhor forma de dizeres alguma coisa?
Não foi nenhuma transcendência. Acho que teve muito a ver com as circunstâncias históricas do momento. A vontade de fazer música surgiu quando já estava em Lisboa como estudante universitário, quando havia ainda aquele underground punk lisboeta de 78, 79. Foi uma coisa que me interessou, uma vez que estava a seguir o que se passava, nomeadamente, em Inglaterra. Já tinha ouvido falar vagamente dos Faíscas, a primeira banda punk portuguesa, quase em simultâneo com Inglaterra, no [programa Rotação, transmitido pela Rádio Renascença e da autoria de] António Sérgio, mas quando cheguei a Lisboa já não havia Faíscas. Mas surgiram os Xutos & Pontapés, dos quais vi o primeiro concerto, o Corpo Diplomático, de quem também vi o primeiro concerto, os Aqui d’El Rock, os Minas & Armadilhas… Toda essa movida lisboeta, muito underground, muito específica, muito centrada na Avenida de Roma mas com concertos pelos liceus da capital – D. Pedro V, o António Arroio, etc. O ambiente contagiava. Aquele fenómeno que aconteceu em Inglaterra a partir dos [Sex] Pistols, dos Clash, etc., passou-se também um bocado naquele microcosmos lisboeta, e foi esse tal contágio, essa vontade de subir a um palco e apresentar uma coisa vagamente parecida com música, que me despertou o desejo de, depois, transportar isso para Braga. E em Braga as coisas aconteceram. Houve pessoas que embarcaram comigo nesse disparate de mandar uns berros e de fazer de conta que se tocava, e assim nasceram os primeiros projectos. O primeiro foi o Bang-Bang e nunca saiu da sala de ensaios. O segundo saiu; foram os AuAuFeioMau. E a partir daí a semente ficou lançada.
Quando regressaste a Braga, já contavas encontrar pessoas que partilhassem esse tipo de interesses, ou foi uma surpresa para ti quando percebeste que havia mais pessoas que queriam embarcar nisso?
Não foi propriamente uma surpresa porque estou com um pé em duas gerações. Uma geração mais velha que fez o 25 de Abril, que esteve nas noites quentes da revolução e com quem partilhei muitas coisas e aprendi muito, mas que era mais velha e eu sentia que não iria alinhar nisso [de formar uma banda inspirada pelo punk], pelo menos maioritariamente – como não alinhou; só o fez bastante mais tarde, até porque não estava virada para o rock mas sim para o jazz, para o free, etc. Portanto, sabia que dali não podia contar com nada. Mas também havia uma geração emergente, de pessoas mais novas do que eu, amigos e colegas do meu irmão, que também estava atenta às coisas que se passavam, e foi com essas pessoas que sentia que poderia avançar, e foi efectivamente com elas que avancei.
Qual é a diferença de idades entre ti e o teu irmão?
Não chega a quatro anos.
Numa canção dos Mão Morta, mencionas que, por alturas do 25 de Abril de 1974, estavas…
“Demasiado entretido a crescer para saber o que é que estava a acontecer”.
De qualquer forma, tinhas pelo menos a consciência do que estava em causa e de quem estava envolvido.
Sim. Quando surgiu o 25 de Abril de 1974 eu tinha 14 anos. Era um adolescente, e passei toda a rebeldia da adolescência juntamente com a rebeldia social que foi o pós-25 de Abril. Confunde-se o individual com o colectivo. Nesse aspecto, considero que fui um privilegiado. Mas não tendo no 25 de Abril uma consciência aguda do que é que estava em jogo; do que é que era – para falarmos em termos mais simples – a esquerda e a direita; o que é certo é que a época proporcionava uma aprendizagem rapidíssima de uma data de coisas, o que me fez, dentro do panorama social, juntar aos rebeldes, à extrema esquerda. Foi uma aprendizagem com muitas leituras, que era uma coisa comum a toda a gente, que aprendeu imenso sobre teoria política e história política nessa época, de autores de um lado estritamente político, de autores literários, sobre pintura, sobre movimentos contestatários, situacionistas, surrealistas, dadaístas, etc… Foi uma onda gigantesca de informação que foi reciclada, bem ou mal, com mais profundidade, com mais superficialidade, mas a uma grande velocidade. Rapidamente fui percebendo o que me interessava ou não. Fiz o meu percurso. Estive com trotskistas, com anarquistas, fui escolhendo até encontrar a minha própria leitura e o meu estar face à política.
Ao transpores o frenesim musical que encontraste em Lisboa para um lugar bastante mais pequeno, encaravas como um estímulo o facto de estares a movimentar-te num meio com tradições bastante mais conservadoras, logo tendencialmente mais resistente e mais passível de ficar chocado com aquilo que vocês pudessem fazer?
Os meios não se misturavam muito. Ponhamos as coisas no seu devido lugar: quando eu falo do punk lisboeta, estou a falar de um microcosmos, de um underground muito específico que movimentava, no total… se movimentasse 500 pessoas já era muita gente, mas penso que movimentava muito menos do que isso. Em Braga havia um núcleo de pessoas que estava perfeitamente afastado da Braga das famílias, dessa Braga ligada à igreja e ao poder estabelecido, ligada à tradição e à resistência contra a inovação. Fora dessa Braga estratificada havia uma data de pessoas, uma data de jovens: uns mais velhos que regressavam à cidade depois de terem estado refugiados no estrangeiro ou de terem andado a estudar no Porto ou em Coimbra, onde apanharam movimentos estudantis; outros que estavam ainda nas universidades e que vinham amiúde a Braga; e outros que estavam nos liceus mas que já cresciam num novo ambiente mais aberto e a quem interessava esse lado mais radical, de procura de novas experiências. Havia, portanto, um terreno fértil neste meio reduzido para que as coisas acontecessem. A ideia não era de confronto com a cidade bracarense; havia era uma ideia de partilha, com estas pessoas, para criar coisas, e que funcionava perfeitamente à margem da Braga tradicional, tal como a cena punk em Lisboa funcionava à parte da Lisboa tradicional.
Quando eras miúdo, tinhas lá por casa muitos discos dos teus pais que costumasses ouvir?
Não. Eu vivi quase sempre em Vieira do Minho até aos 11 anos, e lá não havia sequer um gira-discos; havia um daqueles antigos pick-ups em mono, em que a coluna era a própria tampa do gira-discos. As raras vezes em que ouvi discos a tocar nesse aparelho foram discos do Zeca Afonso que eram da minha mãe. O Zeca Afonso foi colega dela em Coimbra, e ela era madrinha do filho mais velho dele. Eram pessoas próximas, e ela tinha todos os primeiros EPs de quatro faixas do Zeca Afonso, que depois formaram o primeiro álbum dele, Baladas e Canções [de 1964]. Penso que eles eram ouvidos um bocado em surdina, porque na altura o Zeca Afonso já estava proibido, e algumas dessas canções estavam mesmo proibidas de ser tocadas. Depois, só volto a ouvir música quando já estou em Braga. Comecei a relacionar-me com colegas, e havia alguma curiosidade à volta da música pop, sobretudo dos hits anglo-saxónicos, nomeadamente nos bailes de adolescentes no liceu e etc. Foi só aí, sensivelmente aos 12 anos, que o meu contacto com a música começou.
Eras frequentador de bailes de adolescentes?
Eram bailes de amigos, de turma, onde tive as primeiras namoradas. Não eram bailes públicos… havia uma festa de anos, convidavam-se os amigos e fazia-se um baile.
Há gravações das tuas bandas pré-Mão Morta?
Dos Bang-Bang não há nada. Dos AuAuFeioMau havia pelo menos uma cassete, que foi uma maqueta que se apresentou na altura à Valentim de Carvalho e foi recusada, e penso que havia uma outra coisa qualquer gravada ao vivo. Mas tirando essa coisa ao vivo, com duas ou três canções que tinham a minha voz, a maqueta foi gravada quando eu estava em Lisboa, de maneira que era o baixista que cantava.
E dos PVT Industrial [de 1984, formada pelo mesmo trio que, nesse ano, deu à luz os Mão Morta: Adolfo, Joaquim Pinto e Miguel Pedro]?
Dos PVT Industrial não há nada gravado.
A que soavam essas bandas? Nos relatos dos primeiros tempos dos Mão Morta, há referências recorrentes ao rock industrial dos Swans.
Nos PVT Industrial havia [influência da música industrial], como o próprio nome indica. A instrumentação era muito à base de gravações de teares, com ruído em cima. A ideia era muito industrial, muito radical. Os Mão Morta recuperaram um dos temas dos PVT Industrial, o “B(r)osh É Bom”, que saiu numa pequena colectânea de uma revista que já não existe, a Entulho Sonoro. Era um dos temas de charneira dos PVT Industrial. O outro tema de charneira era uma versão traduzida para português do “Frankie Teardrop” dos Suicide. Os AuAuFeioMau tinham uma especificidade melódica que vinha muito da guitarra do Zé dos Eclipses; era um som de guitarra muito particular, muito subjectivo, muito característico dele. Mas o ambiente geral tinha a ver com a onda Joy Division, de Manchester, urbano-depressiva. Os Bang-Bang não tinham propriamente uma linha. Eram muito punk porque muito primitivo, muito mal tocado, ainda a arranhar as coisas a ver o que saía. Mas não era punk por estética, não era a fórmula Ramones revista pelo olho inglês; era uma coisa imberbe, para todos os efeitos [risos].
Era punk por necessidade…
Era punk por defeito.
O primeiro álbum dos Mão Morta saiu em 88 pela Ama Romanta. A associação a essa editora andou colada ao grupo durante os primeiros anos, não foi?
Sim. Houve duas coisas que se colaram ao grupo. Uma foi o III Concurso do Rock Rendez-Vous [em 1986], em que ganhámos o Prémio da Originalidade, e que no ano anterior tinha sido ganho pelos Pop Dell’ Arte. Depois foi essa associação à Ama Romanta, que também tinha a ver com o facto de vivermos na altura, tanto eu como o João Peste e a maior parte dos Pop Dell’ Arte, em Campo de Ourique. Houve, efectivamente, uma ligação muito forte à Ama Romanta, por lá termos gravado o primeiro disco e por termos programado o segundo também para a Ama Romanta.
Mas em termos estéticos, parecia haver uma razoável distância entre os Mão Morta e as muitas outras coisas ligadas à Ama Romanta.
A Ama Romanta não tinha propriamente uma linha estética fixa. Havia uma grande abertura a esse nível. Procurava coisas que não fossem comerciais, que tivessem algo a dizer que fosse pertinente em termos musicais, mas não tinha uma linha bem definida. Tinha coisas mais pop, como os Mler Ife Dada; tinha coisas mais experimentais, como os próprios Pop Dell’ Arte; tinha coisas mais rock, como os Mão Morta; tinha coisas mais electrónicas, como Tó Zé Ferreira, por exemplo; tinha coisas mais jazzísticas, como o Sei Miguel… A linha variava muito mas, efectivamente, não havia uma grande proximidade estética entre o que os Mão Morta faziam e fazem, e o que os Pop Dell’ Arte faziam ou fazem.
Porque é que o disco seguinte, Corações Felpudos, acabou por não sair pela Ama Romanta?
Na altura isso deu uma grande celeuma. Basicamente, foi por desentendimentos. Havia três partes envolvidas: o nosso manager na época, o Vítor Silva, a Ama Romanta-João Peste, e Mão Morta, nomeadamente eu. Houve coisas que começaram a não ser cumpridas e acabaram por cair em cima da Ama Romanta, que era o elo mais fraco, pois tinha de avançar com algum dinheiro para pagar algumas coisas e não avançou. Nós tivemos que cobrir esse “avanço”, e já que estávamos a cobrir uma das partes, então não precisávamos dela. Portanto, seguimos [sem a Ama Romanta].
Outro acontecimento da época que passou para a “mitologia” do rock português foi a tua cena do corte com a faca no Rock Rendez-Vous em 89 [Adolfo golpeou-se numa perna em pleno concerto, para desmantelar o ambiente pesado na sala; o corte foi mais vigoroso e a sangria mais abundante do que o pretendido]. Essa “mitologização” também ocorreu porque isso não era coisa que acontecesse em concertos rock por estas bandas.
Não acontecia, nem acontece [risos]. Penso que o choque foi mais a posteriori. Foi de tal maneira absurdo e impensável que nem criou ondas de choque naquele momento… tirando as pessoas que viram sangue e desmaiaram durante o concerto. O choque só começou a surgir passado um ano, e só nessa altura é que se foi gerando a mitologia à volta desse acontecimento. No imediato, ficou tudo sem palavras. Ficou aquele buraco de silêncio que acontece no olho do furacão.
À época, e sobretudo por comparação com o álbum de estreia, o Corações Felpudos deixou-me ligeiramente desapontado. Como é que ele se encaixa no percurso da banda?
O Corações Felpudos tem duas características. Por um lado, é um disco que aproxima muito mais os Mão Morta de uma das bandas anteriores, os AuAuFeioMau, levado em parte pela preponderância que o Zé dos Eclipses tem nesse disco. Por outro lado, é um disco de transição em termos internos. Havia problemas graves de consumo de heroína no seio da banda, e [este período] correspondeu ao desinteresse e ao apagamento da principal referência dos Mão Morta até aí, o Joaquim Pinto, que tinha sido o fundador da banda. Foi um disco em que nós seguimos para estúdio sem nada preparado, numas de fazer tudo lá. Estivemos três dias em estúdio, saímos de lá com três ou quatro interlúdios, e decidimos cancelar tudo. Só voltámos [para estúdio] passados uns meses, aí já com as coisas mais estruturadas. É um disco assim um bocado aéreo, mas que eu considero um dos melhores discos dos Mão Morta.
Costumas reescutar, anos depois, os discos que fazes?
Não tenho esse hábito. Ouço-os muito raramente quando, por qualquer motivo, sou obrigado a ir buscar qualquer coisa, e normalmente fico agradado com o que ouço. Porque já não me lembrava, já não sabia como é que era, o que é que tinha ficado, porque é que a estrutura era assim… Normalmente é uma surpresa para mim.
Nessas raras vezes em que os ouves, acontece encontrares fios narrativos ou outras coisas de que nunca te havias apercebido?
Não, as surpresas são mais a redescoberta dos fios narrativos que na altura tinham sido criados e que eu entretanto perdera por completo.
Quem ainda mantém uma frescura surpreendente é o álbum seguinte, O.D., Rainha do Rock & Crawl, de 1991. Mais um disco que voltou a ter percalços com a edição e distribuição.
Foi um disco mais barato, feito num sítio mais em conta, depois de termos gravado os dois primeiros álbuns na Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, cujos estúdios eram tidos, na altura, como a grande referência. Fomos para o Tcha-Tcha-Tcha, que era um estúdio mais caseiro. Foi um álbum de aproveitamento do momento. Tínhamos a Área Total, uma editora nova que queria editar o Corações Felpudos mas não tinha dinheiro para cobrir o preço que nós pedíamos, e que nos convidou para fazer um outro disco. Nós aceitámos um bocado contra o Vítor Silva, que torcia o nariz – “Ainda nem sequer editámos este [Corações Felpudos] e já estão a avançar para outro. Acho um absurdo.” Mas nós insistimos. Quando fomos para estúdio tínhamos três temas, depois fizemos uma versão completamente diferente de uma canção mais antiga, “Bófia”, inventámos um tema no estúdio, o “Quero Morder-te as Mãos”, um tema estruturado, e também inventámos uma brincadeira em estúdio, o “Divino Marquês”, para a qual já tinha escrito a letra, mas que estava longe de… Foi a partir da letra que toda a música foi estruturada em estúdio, e foi uma experiência tipicamente de estúdio, uma vez que começámos de uma base em que todos tocávamos em simultâneo e todos nos ouvíamos, e a partir de determinado momento cortámos as ligações internas, e as pessoas continuaram a desenvolver essa base, no pressuposto que estavam a fazer exactamente a mesma coisa, no mesmo temo, mas sem qualquer referência; o tempo começou a descambar para cada um, e isso correspondia ao crescendo do texto. O resultado final acaba por ser interessante porque esse perder subtil do tempo, em progressão, acaba por ter a ver com a progressão da própria história.
Ou seja, o “Divino Marquês” que se ouve em disco corresponde ao único take que fizeram da canção.
Exactamente.
Mutantes S.21 vem logo a seguir, em 92, e completa uma sequência de quatro álbuns em cinco anos. É o primeiro disco dos Mão Morta com uma estrutura conceptual claríssima.
Sim. Já tínhamos aflorado [o lado conceptual] no O.D., onde tudo rodava à volta de uma ideia de heróis, mas ainda muito imberbe, mas o Mutantes é que foi efectivamente o primeiro álbum pensado de raiz como conceptual. Foi um disco que deu trabalho. Foi escrito de uma forma relativamente diferente do que fazemos hoje, ou seja, todas as letras foram escritas à partida e depois, basicamente, o [guitarrista] Carlos Fortes trabalhou essas letras em termos musicais, segundo indicações que lhe ia dando sobre as cidades, sobre o que estava em causa em termos musicais nessas cidades. O álbum foi todo elaborado na sala de ensaios antes de ir para estúdio, e mesmo aí também foi muito trabalhado. Foi uma coisa de outro fôlego. E depois, contou com um belíssimo estúdio, o Angel, na altura já melhor do que os de Paços de Arcos, e com um técnico fabuloso: o José Fortes.
É um disco que culmina e remata uma primeira etapa na vida do grupo?
Retrospectivamente, é um disco que faz uma viragem, em termos de crescimento da banda e do olhar sobre nós próprios. Deu-nos um outro fôlego e uma outra liberdade; deu-nos um outro espaço de manobra dentro do panorama musical português e criou as bases dessa liberdade em que hoje nos podemos movimentar.
Foi um momento em que pensaram que isto de ter uma banda e fazer música era uma coisa mesmo a sério?
Nunca pensámos dessa maneira. Foi um disco em que tivemos de dar tudo por tudo. Tínhamos chegado ao Corações Felpudos e, com a separação da Ama Romanta, venderam-nos o disco, mas ninguém pegou nele e acabou por ser editado pelo nosso manager através da Fungui. Depois, avançámos com outro álbum para uma pequena independente da Guarda, que era um retrato do que seriam as independentes na época, e correu tudo mal: o disco acabou por sair atrasadíssimo, com problemas de capa e de rótulos, sem promoção, sem nada, os concertos começaram a rarear… Estávamos, portanto, num momento de ou vai ou racha. Ou arranjávamos uma coisa que nos fizesse sobreviver ou, pura e simplesmente, por muito amor à camisola que tivéssemos, não havia condições para continuar. Estávamos fartos disto, não tínhamos espaço de movimentação. Por isso, o Mutantes S.21 foi a aposta in extremis do Vítor Silva para criar um futuro para a banda e, nesse sentido, funcionou.
O êxito do disco apanhou-vos desprevenidos?
Sabíamos que tínhamos um bom disco, que deveria consolidar-nos no panorama português, mas não estávamos à espera que o “Budapeste” tivesse o êxito que teve e que funcionasse como cartão de visita. À partida, nem sequer pensávamos que ele alguma vez fosse single, porque era um tema demasiado longo para passar nas rádios. Além disso, nem era representativo do som da banda. É uma canção um bocado pastiche velvetiana, que tinha a ver com as tais referências de Budapeste que dera ao Carlos Fortes. Era uma cidade onde se ouvia muito rock antigo, onde se misturava Velvet Underground com música brasileira… Era um mundo novo que se abria aos húngaros, em que todo o passado ficara disponível em simultâneo e assim era consumido, sem secções, sem diferença, sem nada. E os Velvet Underground funcionavam muito bem como referência para o som da canção, porque é o que está na origem de todo o desenvolvimento da música anglo-saxónica dos anos 80 para cá. Além disso, os Velvet eram naquele momento uma referência de charneira para Budapeste.
Ao contrário dos três primeiros álbuns, que foram reeditados pela Nortesul em 1998, Mutantes S.21 ainda não teve direito a regresso aos escaparates.
Estamos a pensar em reeditar este ano os quatro primeiros discos através da Cobra. Não só dos quatro em conjunto, numa caixa, mas também individualmente. Serão remasterizados, e vão sair em edições fac-simile das edições vinílicas mas em CD, e sem extras, para sermos o mais fieis possível ao lançamento original, mas em formato reduzido – incluindo as capas. E também vai haver uma edição limitada em vinil.
Com o sucesso de Mutantes foram parar à BMG, para onde gravaram Vénus em Chamas (1994) e Mão Morta Revisitada (1995). Parecem-me ser os dois álbuns dos Mão Morta menos bem tratados pela passagem do tempo. A esta distância, são discos que te satisfazem?
Não. Também acho que são os álbuns mais fracos da discografia dos Mão Morta, e por motivos diferentes. O Vénus em Chamas foi um disco estranho a diversos níveis. De repente, estávamos rock stars e a ser tratados como tal, e levámos isso até às últimas consequências. Já tínhamos começado com a tournée do Mutantes S.21, mas ao entrarmos para uma multinacional, achámos que devíamos aproveitar e gozar aquilo enquanto durasse, porque sabíamos que não ia durar muito. Vendemos o disco [à BMG] por avanço, ou seja, recebemos o dinheiro e decidimos investir o mínimo de dinheiro possível na execução do próprio disco. Fomos para um estúdio muito barato, e como não tínhamos material nenhum alugámos o estúdio durante muito tempo. O resto do dinheiro, decidimos gastá-lo em jantaradas, em hotéis e outras coisas. Em termos de som, e apesar de termos o José Fortes (que é brilhante mas não estava sempre presente; foi mais na preparação das captações e nas misturas que ele apareceu; o resto delegava nos técnicos do estúdio), nota-se [em Vénus em Chamas] que não é um estúdio de cinco estrelas. Foi o sítio onde gravámos a nossa primeira maqueta, e agora estava todo digital, com um som muito agudo, etc. Depois, é um disco que nós fizemos directamente para CD. Tínhamos 70 minutos à nossa frente, achámos que era uma coisa interessante explorar esses 70 minutos, e explorámos, com tudo o que isso tem de negativo, ou seja, estamos para ali muitas vezes a encher chouriços. Além disso, gastámos 50% ou mais do tempo de estúdio a trabalhar uma das canções, “Velocidade Escaldante”. Todas as outras foram mais ou menos despachadas a correr. Não é por acaso que o “Velocidade Escaldante” sobressai como uma das melhores canções do CD e da discografia dos Mão Morta. Por outro lado, começaram a haver algumas dissenções internas em termos de ego, que era a primeira vez que acontecia na banda, e que tinha também a ver com a ressaca do sucesso do Mutantes S.21 e do “Budapeste”, e que acabou com a saída do Carlos Fortes. Todos esses factores fizeram com que o disco saísse completamente desequilibrado. Tem coisas muito interessantes, tem coisas muito boas, como o “Velocidade Escaldante”, e tem coisas perfeitamente dispensáveis, que são meros exercícios de preenchimento dos 70 minutos que tínhamos disponíveis.
Ficaram vacinados contra a ideia de encher CDs com 70 minutos de música.
Nunca mais pensámos nisso. Ninguém tem pachorra para ouvir 70 minutos de um disco. Foi mesmo uma situação de estar virgem em relação ao novo formato. O clássico formato do LP de 40 minutos ainda é o melhor. Quanto ao Mão Morta Revisitada: a ideia, à partida, era interessante – revisitar, com os olhos da época, músicas do passado –, mas tirando aquelas que nunca tinham sido gravadas, as outras, grosso modo, ficaram piores do que os originais; mais bem gravadas mas com menos força. Ficaram… menos interessantes, com menos urgência, menos tensão, mais moles. Esse é o defeito do disco.
Daí a necessidade do que parece ser uma volta considerável no vosso percurso, em 97, com o projecto Müller no Hotel Hessischer Hof?
Sim, o Müller… vem recompor-nos um pouco porque abre-nos novas perspectivas, novas experiências. Não precisávamos de andar depressa, precisávamos era de fugir às repetições (este disco não tinha nada a ver com o disco anterior) e, sobretudo, tentar essas coisas novas. O Müller… foi um desafio, um ai Jesus, porque não tínhamos bem a noção em que é que nos estávamos a meter. Mas avançámos, e quanto mais avançávamos, mais gostávamos do que estávamos a fazer e da angústia de que esse desafio nos estava a imbuir. E o resultado, visto hoje, parece-me perfeitamente positivo.
A partir de Müller…, fica-se com a sensação que o grupo passa a necessitar, sempre, de um forte esqueleto temático e teórico para cada disco ou espectáculo que se mete a fazer.
Essa necessidade já haveria antes, uma vez que ficámos todos [geograficamente] dispersos, ensaiámos muito pouco, trabalhámos bastante sozinhos, cada qual em seu canto, e precisamos de ter um fio condutor que nos faça todos mover na mesma direcção, apesar da separação. Isso foi-se tornando cada vez mais evidente. Além disso, o facto de criarmos a partir de referências externas à vivência do grupo e precisarmos de procurar um conceito para os discos cria o tal desafio que nos faz tremer, que origina tensão e medo, e que faz com que o material que saia disso seja muito mais interessante.
Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar Se Tornou Irrespirável, de 98, mantém ainda hoje uma frescura quase efusiva. Há já muito tempo que querias dedicar um álbum ao situacionismo?
Foi dos nossos discos mais demorados, mais demorado até do que o disco e o espectáculo do Müller…. Tinha-me esquecido dos situacionistas e do que tinha lido no pós-25 de Abril, e a necessidade de trabalhar sobre o [Guy] Debord aconteceu quando, sensivelmente em 92, li Os Comentários Sobre a Sociedade do Espectáculo, um livro que ele tinha escrito recentemente [em 1988]. Achei-o de tal maneira actual, muito mais claro do a própria A Sociedade do Espectáculo, e com uma perspectiva tão visionária sobre o mundo em que vivíamos que achei que tinha de fazer alguma coisa sobre isso. Comecei a pensar nessa altura (estamos a falar do tempo do Mutantes S.21) como é que havia de dar a volta à coisa. Em 95, salvo erro, fui para a Córsega com um caderno em branco só para escrever sobre os situacionistas, que entretanto voltei a ler; não só tudo o que já tinha lido quando tinha 14, 15, 16 anos, como também livros novos que tinham saído entretanto e que me tinham passado ao lado; arranjei as revistas todas da Internacional Situacionista; e ali na Córsega, ao fim de um mês de pacatas férias a tentar perceber o que havia de escrever, a única coisa que saiu foi o “Anjos de Pureza”. Entretanto, meteu-se pelo meio o Mão Morta Revisitada e o convite à última da hora, de hoje para amanhã, do Müller…, e aquilo sempre em pano de fundo, sem poder avançar. Até que finalmente avançou, mas num esquema completamente diferente (foi a única maneira de desbloquear), que foi o Miguel [Pedro] e o [António] Rafael começarem a escrever as músicas e eu, já em função dessas músicas concretas, escrever as respectivas letras. Depois disso, começou-se a pensar em termos estruturais, em como é que se havia de jogar com as várias análises, criando uma espécie de quadro com diversas vozes, leituras e visões, que é uma paródia à obra dos próprios Mão Morta, no papel de intérpretes dessa visão económico-social do mundo em que vivemos. Este processo final, em que tudo se desencadeou, foi relativamente rápido, mas até aí chegar foi tudo muito lento. No início, a escolha estava muito centrada no Debord, mas deixou de ser assim quando ele morreu [em 1994]. Achei de mau tom e oportunista fazer um disco sobre o Debord quando ele tinha acabado de morrer, de maneira que o disco passou a focar-se mais no situacionismo. Mas foi difícil encontrar o mecanismo para pôr em disco uma teoria tão complexa.
O que é interessante, e perturbador, é que toda aquela espiral mórbida e suicida por onde o disco segue é ainda mais actual agora do que há 11 anos.
Hoje consegue-se perceber ainda melhor, porque com o avançar do liberalismo económico as coisas tornaram-se de repente mais claras. O teatro socialista, ou pseudo-socialista, o socialismo real, caiu. O liberalismo tornou-se a ideologia vencedora e levou quase ao caos a que actualmente assistimos.
Primavera de Destroços, o primeiro álbum desta década, é também o primeiro a ter a electrónica num patamar tão destacado.
O Miguel começou a trabalhar com bases electrónicas no Müller…. Nessa altura ainda usou princípios e maquinaria muito rudimentares e falíveis, mas foi o início do seu interessar-se pela electrónica. Depois, já com melhores equipamentos, ele começou a compor a partir da electrónica para depois acrescentar os outros instrumentos, e onde isso se reflecte em força pela primeira vez é no Primavera de Destroços.
Esse recurso aos ambientes digitais vem reaparecendo nas tuas actividades extra-Mão Morta. Os Mécanosphère vão um pouco por aí, tal como as tuas coisas a solo.
Sim, mas são abordagens diferentes. O Miguel mexe muito na electrónica e na computação em estruturas de canção, criando bases ou ambientes mas tendo sempre em vista essa estrutura de canção, mas os Mécanosphère não: partem das bases do hip-hop e do dub para, com estrutura electrónica mas também juntando instrumentos acústicos, criar música industrial, onde o esqueleto de canção não existe de maneira nenhuma, onde a própria evolução do que se vai juntando e tirando é que constrói o tema, e onde o improviso é extremamente marcado.
Os Mécanosphère ainda existem?
Sim, apesar de não tocarmos há mais de seis meses. Temos um disco que estamos a construir paulatinamente, temos concertos falados para daqui a poucos meses, quando o disco for lançado, estamos a trabalhar com alguns autores anglo-saxónicos… Vamos ver o que sai.
Como te soa o Nus na memória?
Não tenho muita memória de como é que soa, mas penso que há-de soar bem. Pelo menos no que toca a mim, o Nus é uma experiência de quase catarse. Porque é um disco feito quando eu estava no estrangeiro, em Paris, com um misto de saudades não assumidas pelo que tinha deixado em Portugal (amigos, pessoas com que me relacionava, etc.), e o facto de, de repente, receber em Paris notícias da morte sucessiva de muitas dessas pessoas. Pessoas que jantavam em minha casa; com quem estava amiúde quando vivia em Lisboa; que eu conhecia de Braga e com quem me dava e que tinham andado comigo no pós-revolução. Havia uma data de memórias, de sentimento de perda misturado com as saudades, que tinham a ver com a minha geração e que precisavam de ser, de alguma forma, esconjurados. Esse Nus é um pouco isso. O livro do [Allen] Ginsberg [Uivo e Outros Poemas] foi só o mote congregador, mas outra vez um mote para as outras pessoas perceberem, melhor do que qualquer coisa que eu escrevesse, o sentido que o disco podia tomar. A partir daí, o Miguel trabalhou muito bem as músicas, e a ideia de fazer um tema progressivo como o “Gumes” surgiu dele, e a partir da estrutura que ele criou eu fiz as letras.
O que nos traz até ao recente projecto/ espectáculo/ disco/ DVD do Maldoror. Ficaste com vontade de fazer mais espectáculos cénicos depois de tanto trabalho com isto?
Agora já conseguimos começar a respirar e a estar sem o peso do Maldoror em cima. Com a saída do DVD fechámos definitivamente a porta. O espectáculo ficou em cena demasiado tempo para uma pessoa poder descansar: tive as duas primeiras apresentações em 2007, e a série seguinte de espectáculos apenas em 2008. Além dos três anos de preparação anteriores, houve ali um ano de tensão, de espada em cima do pescoço, porque estava sempre susceptível de voltar ao palco, e era um espectáculo muito desgastante, com muita marcação, muito texto. Era um terror, e quando aquilo chega ao fim, e apesar do alívio por aquilo ter acabado, a ideia é não tornar a pegar em espectáculos deste género, com este peso, tão cedo. Mas agora já começo a estar mais relaxado e a conseguir pensar numa coisa desse género.
Mas já pensas em algo de concreto?
Não, não estou a pensar nada [risos]! Já consigo é falar sobre um possível futuro espectáculo. Já não se me levantam os pêlos nem fico em estado de pânico e ansiedade, e já é possível que daqui a dez anos faça outro, ou daqui a cinco. Mas não para agora.
A que vão soar as próximas canções dos Mão Morta?
Não faço ideia. Estamos ainda numa fase de discussão, temos algumas ideias muito aéreas, mas não há nada feito. A ideia é que seja um disco mais rock, que sejam temas muito curtos, mas não temos mais nada avançado. Entretanto, conto que saia em Abril pela Cobra um novo disco com as bandas sonoras dos filmes que fizemos para a Maya Deren. Em Junho do ano passado, as Curtas de Vila do Conde convidaram-nos para uns filmes-concertos, e nós escolhemos a Maya Deren. Gravámos essa execução, a captação está razoavelmente boa apesar de ser uma gravação directa da mesa (ou seja, não é multipistas), e decidimos editá-la. A minha voz aparece, mas o grosso da coisa é instrumental. Sobrevive bem sem o acompanhamento visual porque tem bastante tensão, tem crescendos. Não é música para passar na rádio, mas sobrevive bem enquanto disco de… posso mesmo chamar-lhe rock.
O passado pesa-te, ou preferes mantê-lo a uma distância segura?
O passado não me pesa. Pesam-me mais os anos, fisicamente. Até porque não fico muito preso ao passado. Tirando o fugaz momento em Paris, o passado vai passando, ficando para trás, sem olhares nostálgicos. A ideia é olhar mais para o futuro. Gosto muito do passado, mas para descobrir coisas que outros fizeram. Gosto de ouvir música feita nos anos 60, 70, 80, 90. Ouço muito mais música feita no passado do que feita actualmente. O passado, para mim, serve como matéria para o futuro. O passado pelo passado não me diz rigorosamente nada.
Sentes o risco de uma banda, a partir de uma idade, passar a viver só para os aniversários redondos? São os 20 anos sobre o lançamento do disco x, a digressão dos 25, depois é o álbum comemorativo dos 30…
É verdade que as bandas têm tendência a comemorar os aniversários redondos, mas não é habitual as bandas durarem muitos anos. Mas, por exemplo, os Mão Morta fazem este ano 25 anos e nem nos lembrámos disso. Foi preciso uma entrevista qualquer, há meia dúzia de dias, em que perguntaram o que estávamos a pensar fazer para comemorar os nossos 25 anos. Temos muitas coisas programadas para este ano a nível de edições, mas não as programámos por serem os 25 anos.
Do que mais te orgulhas de ter feito em 25 anos de Mão Morta?
Acho que me orgulho do percurso como um todo. Acho que fizemos um bom percurso. Soubemos reagir bem aos desafios que se nos foram colocando, soubemos responder, soubemos aproveitar, e conseguimos criar um espaço que nos dá uma grande liberdade de actuação. No fundo, fazemos aquilo que mais gostamos: música. É evidente que posso citar um disco ou outro pelo qual tenha particular carinho, mas não é esse disco, isoladamente, que me dá um grande orgulho.
Tens dificuldade em recusar convites de outras bandas para colaborações? Já recusaste alguma proposta dessas por achares que aquilo não te dizia muito?
Já recusei porque não me dizia nada, porque não tinham interesse nenhum para mim mas, sobretudo, já recusei por falta de tempo. Mas tenho dificuldade em dizer que não. Parto do princípio que, se a pessoa vem ter comigo, é porque já passou uma primeira fase de ganhar coragem para o fazer. E, depois de ter ultrapassado essa fase, eu, do alto de um qualquer pedestal, dizer que não, quase como uma espécie de desprezo (porque o “não” é sempre recebido como contendo algo de desprezo), é uma coisa que me custa muito. Se as pessoas se esforçam, têm as suas coisas e têm gosto em ter uma voz, ou uma letra, ou seja o que for meu, no trabalho deles, é muito egoísmo e insensibilidade da minha parte negá-lo. Dentro do possível, tento dizer que sim.
Achas-te, por regra, pessimista?
Não, não. Também não sou optimista, mas tenho uma considerável dose de optimismo. Acredito normalmente que, quanto mais não seja por milagre, as coisas vão correr bem [risos].
Comentários
E ficou a, erm, matar com as fotos do Adolfo, não?
Beijinhos.