Jane Siberry



Artigo publicado na rubrica Fundo de Catálogo do Blitz em Julho de 2002: 


JANE SIBERRY
BOUND BY THE BEAUTY
Duke Street, 1989

Proveniente de Toronto, Canadá, onde nasceu em 1955, Jane Siberry completou um curso de microbiologia enquanto dava os primeiros passos musicais em pequenos palcos. As gorjetas recebidas enquanto empregada de mesa financiaram um primeiro disco, em 1981, a que se seguiu uma frutuosa ligação à Warner, quebrada em meados dos anos 1990, optando desde então pela edição de autor e gestão das actividades a partir da internet.
Bound by the Beauty amacia as arestas espalhadas por gravações anteriores e confirma Jane Siberry como uma das melhores escritoras de canções dos últimos 25 anos. Bastava reparar na sua poesia, imprevisível e transparente, onde monólogos sinuosos coexistem com as mais ascéticas e imponderáveis observações, para lhe atribuir tal estatuto, mas o que Jane faz vai muito, muito além disso. Há a voz, que se desmonta em múltiplos papéis, fascinante coreografia aleatória que, ainda assim, ilude sugestões esquizofrénicas. Tudo isto em canções que viajam pelo mundo, tocam ao de leve na tradição dos cantautores, imaginam o alt. country a uma carrada de anos de distância, reconhecem o fascínio pelo music-hall e sonham uma pop inobliterável.
É por uma variante inclassificável de country-pop (etérea?) que envereda o primeiro par de canções. O tema-título é um milagre de felicidade e optimismo, a sublimação de laços entre a natureza e o espírito, enquanto "Something About Trains" fala da terra e da Terra, desconcertantes canções armadilhadas pelas inflexões impossíveis de uma voz que canta em dueto consigo própria para lidar com a poesia das estrelas, levando a música atrás de si.
"Hockey" acentua a arte de mostrar a vida através dos pormenores. A nostalgia pode magoar ("He’ll have that scar on his chin forever/ Someday his girlfriend will say “hey, where...?”/ He might look out the window... or not"), mas o crescendo nunca resolvido é embalado por um piano, e os sinos natalícios voltam a trazer luz. "Everything Reminds Me of My Dog" é hilariante de uma forma saltitona e saudavelmente demente, antecipando "The Valley", canção íntima para voz e guitarra eléctrica e pouco mais, imensa canção de amor de um para um. Melhor do que isto só "The Life Is the Red Wagon", embalado por um refrão portentoso que lança a canção numa vertigem over the top que cumprimenta os Abba (elogio maior é difícil de imaginar). E os comboios, outra vez...
O quase apocalíptico (no sentido bíblico) "Half Angel Half Eagle" contém um bloco de versos que narra o momento crucial do filme Magnolia dez anos antes da sua existência. "La Jalouse", outra conversa ao ouvido, mostra agora um tom amargo e arrastado, marcando um sóbrio contraste em relação ao resto do álbum.
Bound by the Beauty termina ao sol, numa viagem do Canadá para as Caraíbas e Brasil em dois andamentos de suave progressão. "Miss Punta Blanca", ritmo veloz e surdo marcado pelas cordas de uma guitarra acústica e voz docemente ébria, desagua no gelado de sabor a salsa e bossa-nova de "Are We Dancing Now?". A voz, ebriamente enamorada, tropeça em suspiros – "Did you just touch my hand?/ ...And did you just kiss my shoulder?/ Ah, life’s a mystery.../ ...And do you have your hand on my knee/ And are you moving it extremely slowly?".
No final, delicioso, há uma pergunta retórica: "Are we dancing now?/ Ah, life’s a mystery". Quem acha que não é possível fazer canções de coisas felizes é porque nunca ouviu Jane Siberry. E viva os comboios!

Descendências:
Ben Folds Five - Ben Folds Five
Suzanne Vega - 99.9º F.
Vários - Magnolia

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