Still Frank

Texto escrito para o programa do concerto-encenado Still Frank, apresentado a 11 e 12 Dezembro de 2010 no Teatro Carlos Alberto:


Maus Fígados

Isto não vai acabar nada bem. Na verdade, isto nem sequer começa lá muito bem.

No início, em plena “Criação”, há um actor cansado e agoniado (Pedro Mendonça) que põe a rolar, mecânica e ruidosamente, uma máquina de costura. A velha e inútil escultura funcional de ferro e madeira ganha vida, tanta vida que o som que faz parece o som de uma locomotiva a vapor correndo, dentro do horário previsto, rumo a um inferno. A correria da máquina é amplificada, e amplificada, e amplificada. A pulsação começa a ser insustentável para as suas próprias veias, que parecem esperar que a agulha salte do seu lugar e rebente o que tem de rebentar.

Este actor cansado é Frank. Frankenstein. Still Frank. Ainda franco. Ainda Frank. Frank imóvel. E a vetusta máquina de costura, que cria o primeiro de diversos instantes de música concreta neste concerto encenado, é da marca Mundlos. Mundlos, sem boca. Mundlos, uma marca alemã que também forneceu, por exemplo, baionetas às tropas alemãs na Segunda Guerra Mundial. Frankenstein, a pedra de Frank.

A máquina de costura ruidosa, a locomotiva fumarenta, Frankenstein: tudo construções da revolução industrial. O futuro é moderno, o futuro vem coberto de fuligem, o futuro trabalha por turnos e sem dias de descanso. Nesta revolução cria-se a semana inteira. Logo, nesta revolução rouba-se o fogo divino e cria-se… algo. Mary Shelley deu pela primeira vez à estampa “Frankenstein; Or, the Modern Prometheus” em Londres, 1818, após uma inspiradora digressão pela Alemanha e Suíça na companhia do amante (e poeta) Percy Bysshe Shelley, que incluiu uma longa estadia na casa de Lord Byron, junto ao Lago Genebra. Nesse tomo, Frankenstein cria um monstro a partir da reciclagem de cadáveres. Fechando o círculo, o monstro criará morte, acidental ou nem por isso. “Cuidado com o que crias/ Pode ser que o temas/ Cuidado com o que querias/ Pode ser que o negues.”

“Still Frank” contém um pesadelo, um nascimento que é uma descida amparada rumo a uma luz e a um fogo que nada têm de etéreo. É uma fundição (em bom rigor, um outro tipo de matéria primordial) encenada por Ana Luena a partir de versos hipnotizantes e vívidos de Daniel Jonas. O parto é doloroso, suado. Na enfermaria passa música que partilha a mesma nascente incandescente, adequadamente industrial, os Throbbing Gristle levantando uma nuvem de terror que uiva aos ouvidos de rádios preparados por John Tilbury. Quando a tempestade acalma, pode também escutar-se o rock geométrico e nada apaziguador dos King Crimson, ou um pós-rock metronómico que espera que algo aconteça. E quando se pensa que sobra apenas o silêncio, percebe-se que há no ar o zumbido da estática de um aparelho de televisão que ninguém quer ter. Mas esta é só parte da música desenhada por Rui Lima, Sérgio Martins, Peixe e Samuel Coelho.

Frank arrepende-se de ser Frankenstein. Tal como vem acontecendo nos últimos 200 anos de literatura e cinema, o criador surge misturado com a criatura, “a grande besta”. A criatura, suprema negação da existência, não tem nem nunca virá a ter nome. O criador ambiciona ser Prometeu mas falha estrondosamente, e nem sequer é evidente que Victor Frankenstein tenha fígado para tão grande desígnio. A criatura lamenta-se: “Sou de aço inolvidável/ Açaime o nome/ Barras de ferro os braços/ Sou entre grades.” O criador apercebe-se demasiado tarde do perigo de esgaçar a ambição para lá das suas capacidades. A criatura é abandonada no nascimento, fica órfã mal se vê coisa feita: “Ó mãe, quem és, se és alguém, que eu não/ Nasci, enfim, de mera combustão…”

O monstro com que se lida em “Still Frank” não é bem a máquina destruidora, acidental ou nem por isso, gerada por Mary Shelley. Mesmo que, por alturas de ‘A Criatura Mata’, a contenção abra brechas e, cercado por um bando de músicos subitamente portáteis, ele clame: “Loucura/ Acometido de loucura/ Saltei-lhe ao pescoço/ Fiquei com a faca/ E experimentei-lhe/ O gume.” Sim, a criatura mata. Dito isto, e imaginando que se desconhecem os seus crimes, é evidente que a tragédia existencial se revela matéria suficiente para o ocupar “vida” afora, por muito breve que ela venha a revelar-se. Este Frankenstein criador-criatura é um Frankenstein fixado e transtornado com o seu próprio vácuo: “Baptisfério fotovoltaico/ Meu mestre, quem és?/ Vate que me adivinhas/ Vade retro/ O que me querias?/ Porque me criaste?” Uma história de incompreensão, pulsão mortífera e solidão, que pode ou não ir parar ao círculo polar árctico.

E o resto da música desenhada pelo quarteto? O resto é um rock que anda perdido num suave remoinho (suave mas, como tudo nesta história, com tendência a piorar), rodeado por uma parede de ecos. Aqui há vozes descarnadas, ali um violino conferindo um tom carmim aos lábios gélidos do som. Às vezes a música também é praticamente minimal, muito provavelmente repetitiva. Em “Still Frank”, e em putativa homenagem ao que se seguiu à revolução industrial, a representação física de um conjunto de músicos num espaço de comunicação e cumplicidade é impiedosamente estilhaçada: esta é uma banda atomizada, cada intérprete confinado ao seu próprio paralelepípedo e rodeado de diversas manifestações de tecnologia.

Frankenstein persegue o remorso perseguindo o seu monstro pelo gelo. Gelo e fogo. “O frio chama o fogo/ Um fogo indomável/ Um pesadelo deflagrando/ Nos teus sonhos”. O monstro morre no gelo? Para que lhe interessa ser um produto de um tempo em que a ciência já produz maravilhas quando ele se sente sem lar, sem mãe, sem deus e sem companheira? Retorne-se ao vácuo: o monstro de Frankenstein é um monstro sem nome; um vazio mais, a juntar a tantos outros vazios. O monstro é um receptáculo que não pode ser preenchido, uma cratera repulsiva. Porque com a morte não se brinca, e com a vida a partir da morte muito menos.

A descida ao inferno: é nisto que dá meter-se com o criador, aquele que se escreve com C maiúsculo. As oscilações de altitude são acentuadas em “Still Frank”, pelo que, se está a ler estas linhas já depois de ter encontrado o seu lugar na plateia e não trouxe garrafa de oxigénio, apele à compreensão do assistente de sala e corra atrás de uma.

Frankenstein é pai e mãe. Frankenstein é o titã que roubou o fogo aos céus e que paga pela ousadia. Frankenstein teria maus fígados – ou, se calhar, bons fígados. Há águias em “Still Frank”? Nem por isso, mas há, lá está, muito fogo. Não daquele literal, mas o que sai da sinfonia abrasiva dos músicos; dos movimentos ora arrastados, ora violentos, ora cambaleantes, de Pedro Mendonça; da escuridão; do ar. Também não há Hércules, e só Frankenstein sabe a falta que ele lhe faz.

Ser monstro é uma profissão dura. O de “Still Frank” até trabalha como deve ser (usa pedra e terra), mas o seu destino está escrito – mais concretamente, está escrito nos baldes que carrega, letra a letra: “S”, “T”, “I”, “L”, “L”. Ainda Frank. Frank imóvel. Resta-lhe suspirar por um pós-mortem minimamente decente: “We all have our dreams and mine are cellophane/ wrapped up and ready to go.” No final de tudo, a criatura nada mais deseja do que o final de tudo. No final de tudo, o espectador pode aperceber-se que a sonolência que o guiou por este breve pesadelo deixou-o prostrado sobre uma cama de pregos.

Vai-se a ver, “Still Frank” é uma tragédia edipiana sem mãe à vista. Só um pai que se confunde com a monstruosa criação. Frankie não vai para Hollywood tão cedo. E isto não vai acabar nada bem.

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