Pedro Abrunhosa - Entrevista

Publicado na Time Out Porto de Abril, e na Time Out Lisboa em Abril:


Em Directo da Carrinha de Exteriores

Pedro Abrunhosa trocou os Bandemónio pelo Comité Caviar e fez-se à estrada – na América. Jorge Manuel Lopes ouviu as histórias por trás de Longe

Quase tudo em Longe, da capa a várias canções, tem a ver com o imaginário americano da estrada que atravessa o deserto…
Sim, mas também tem a ver com a ruptura total e radical que fiz em termos de músicos e de estrutura técnica. Andei 16 anos sempre com os mesmos músicos e técnicos; 16 anos de vida discográfica, porque alguns até mais. E depois há uma espécie de retorno às origens do gospel. Um retorno ainda um bocado mais telúrico do que no Viagens, porque no Viagens há ali um funk e r&b. Quando era miúdo ouvia muito, mas mesmo muito gospel. Gospel puro, da Mahalia Jackson, Golden Gate Quartet… Os meus pais tinham uma formação muito ecléctica para a altura. Não era muito comum um branco europeu ter em casa discos de gospel – e não éramos uma família religiosa. Também ouvia os discos de blues do John Lee Hooker, Sam Lightnin’ Hopkins, e isso acaba por vir ao de cima. Sei gospels inteiros de cor. Acho que este disco está inundado de gospel, no sentido musical e no sentido da profundidade da alma.

O título é uma palavra vaga, aberta a vários imaginários.
Remete muito para aquele imaginário que tenho andado a explorar lá nos Estados Unidos. Aquele é o país das distâncias, onde nada se mede em milhas mas sim em journeys. E nas cidades mede-se em blocks. É também por isso que lá os carros são grandes [risos]. E este também é um disco que respira espaço, que é orgânico. As misturas dos discos americanos são muito in your face, ao contrário das misturas inglesas, que são mais para o etéreo. Basta ver a cena da britpop, dos Blur e dos Oasis: são grandes walls of sound mas a voz está lá no meio, é mais estilizado. Com os americanos é tudo mais rough e com a voz à frente. E expliquei isto ao João Bessa, que co-produziu comigo e é uma peça fundamental deste disco.

Ao contrário do Luz, que era um disco de interiores, o novo álbum é coisa que soa a relento.
É mesmo um disco de relento, de exterior, de eu andar de carro pelas cidades norte-americanas. Há lá uma música, o “Enquanto Há Estrada”, que é um bocado isso. É um disco de bombas de gasolina, de vento, de dormir a céu aberto, daquelas personagens que tanto habitam na berma da estrada como nos filmes do Tarantino (aquela gente existe mesmo). Mas também faz lembrar Cabo Verde, a ilha de São Vicente, ires por lá fora à noite e teres o Café Lisboa, o Morabeza, e a música a vir de todo o lado. Faz-me sempre lembrar aquela coisa da música não ter fronteiras. Tudo isto passado para a prática implicou um novo grupo, um novo som, novos músicos. Alguns permanecem [da banda anterior de Abrunhosa], mas já faziam a transição nos Bandemónio. Os Bandemónio eram uma estrutura moribunda, já não tinham razão de existir naquela encarnação.

Moribunda em que sentido?
Os primeiros Bandemónio eram alunos meus, e depois há uma dada altura na tua vida em que tens de assassinar a tua obra. Tem de ser. E eu fui assassinando-a. Mas às vezes é preciso também assassinar os símbolos da tua própria obra: as marcas, as pessoas, as ligações, os nomes…

Custa-te fazer isso?
Não, dá-me muito prazer fazer isso [risos]. Até fizemos um filme [de animação] em que o logótipo dos Bandemónio comete auto-assassinato. Não é suicídio, é auto-assassinato. É matar a iconografia para te libertares e seguires em frente. É um bocado a reforma do sistema. E comparado com os outros discos, este tem mesmo um novo som. Foi o primeiro disco que gravei ao vivo no estúdio, toda a gente a tocar ao mesmo tempo. Foi o primeiro e nota-se; nota-se ali a energia a explodir. Às vezes até há energia a mais. Por isso é que é Comité Caviar e não Bandemónio. Os Bandemónio eram mais cerebrais. Foi uma fase porreira, mas agora faria aqueles discos de uma maneira diferente. São discos que têm coisas interessantes, mas têm outras que francamente... Mas ainda bem que é assim. Tenho ideias novas, vou ouvindo música nova, e depois o mundo já não é o mesmo [desde o aparecimento dos Bandemónio]. Nova Iorque… aquela cidade é diferente sem as Torres [Gémeas]. Os Radiohead editaram discos interessantíssimos, os Sigur Rós fazem um trabalho notável, em Portugal começa-se a cantar em português de uma forma muito curiosa, todas as circunstâncias cívicas, políticas e sociais [alteram-se], e isso dita que uma pessoa olhe para trás e ache as coisas insípidas. A razão pela qual a minha música tenta mudar é porque as coisas mudam à volta.

Há canções no disco onde parece que se estão a divertir à brava, como “O Rei do Bairro Alto” e “Ai Ai Caramba! Já Fui”.
Estamos mesmo. São músicas de ironia, de letras sobre a realidade do país, mas também músicas de celebração, em que toda a banda canta junta. “O Rei do Bairro Alto” fala de arquétipos sociológicos portugueses. São quatro indivíduos… Não sei se são o rei do Bairro Alto ou se querem sê-lo. Atenção que o Bairro Alto funciona aqui como uma espécie de Terreiro do Paço dos alternativos. O político de esquina daqui do Porto quer ser rei do Terreiro do Paço, e todos os nossos intelectuais querem ser rei do Bairro Alto. É aquela ambição desmesurada, como já acontecia durante a monarquia absoluta, de agradar ao poder, de estar perto da corte. Pode ser rei do Bairro Alto, de Cascais ou do que tu quiseres – tem é que ser uma coisa que esteja a dar. Aquela coisa que eu digo, “Entro de lado no Porto inteiro/ Conheço o dono e o porteiro”: há gente que vive disso. Comecei por fazer o “Ai Ai Caramba!” nos Estados Unidos, baseado nos mexicanos que fogem para lá; agora até estão a construir um muro. Depois, apercebi-me que também há muitos portugueses a fugir para Espanha e para outros lados. A letra é sobre alguém que está farto do lodaçal onde vive.

Qual é a maior virtude da pop-rock feita em Portugal?
Todo o país numa profunda crise institucional, política e económica tem um escape na arte. Nestas alturas, os criadores têm um enorme manancial ao seu dispor. Sempre foi assim. O humor explode. As artes plásticas estão no seu apogeu. A maior virtude da música feita cá é que teve a capacidade de se reencontrar depois de uma fase completamente estúpida (não há outra palavra para isso) em que se canta num inglês macarrónico. A capacidade para se reencontrar com a sua história e a sua poesia, e então tens grupos como os Deolinda, os Virgem Suta, os Foge Foge Bandido do Manuel Cruz, o João Só e Abandonados… Há uma explosão de música bem escrita em português e bem produzida. É uma das virtudes da má liderança deste país.

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