Diabo na Cruz

Publicado em Dezembro no Actual do Expresso:

Virou!
Diabo na Cruz
FlorCaveira/Mbari

“Virou!” é o mais eufórico disco até agora saído da comunidade FlorCaveira e a confirmação do talento de Jorge Cruz, o mentor dos Diabo na Cruz, como um compositor e produtor que sabe que a distância entre a pop e a música tradicional pode ser nenhuma – e com sageza para fazer uma festa nesse território comum. ‘O Regresso da Lebre’ dá início ao disco com não mais do que a voz de Vitorino e um coro de percussões. A fusão com o rock vem a seguir em ‘Tão Lindo’. No resto deste álbum de 28 minutos há acenos aos Heróis do Mar, rendas e bordados rítmicos reminiscentes do rock progressivo e guitarras cristalinas como as da escola Television-Strokes. Os teclados de João Gil são essenciais no preenchimento cromático, como essenciais são as harmonias vocais de Cruz, B Fachada e Bernardo Barata. “Virou!” usa a noção de modernidade lançada por António Variações para obter resultados muito diferentes: aqui a combinação de raízes e cosmopolitismo também liga o Minho (e Trás-os-Montes, e o Alentejo) a Nova Iorque, mas tudo explode num alucinante e auto-explicativo ‘Corridinho do Verão’.

 
 
Lúcifer e os amigos apóstolos

Os Diabo na Cruz são o contraditório pagão dos rigores espirituais da comunidade FlorCaveira. Com a saída de “Virou!”, o líder Jorge Cruz dá graças por uma nova geração que pensa a música em português.

A uma década de distância, percebe-se que já havia na música que Jorge Cruz fazia nos Superego, o trio em que primeiro deu nas vistas, sementes do que agora brota no seu novo projecto, o quinteto Diabo na Cruz. Um quinteto onde Cruz, um aveirense que experimentou anos de labor no Porto antes de fazer as malas para Lisboa, se junta a B Fachada, Bernardo Barata, João Pinheiro e João Gil para dar ao colectivo FlorCaveira o seu braço mais pop-folclórico-funk. A meia surpresa veio em meados de 2009 com o EP “Dona Ligeirinha”. A confirmação tem a forma do agora editado álbum “Virou!”. Onde nem falta uma viçosa bailadeira de rancho a adornar a capa, as saias tradicionais erguendo-se para revelar roupa interior muito século XXI. José Vilhena há-de sentir-se orgulhoso.
Regresse-se à pré-história. Nos anos 1990, nos Superego, Jorge Cruz já cantava em português enquanto fazia rock devedor, mais em espírito do que em som, do deflagrar do grunge. Mas também já acenava à música popular portuguesa, cantando ‘As Armas do Meu Adufe’ ou ‘O Galo É o Dono dos Ovos’, de Sérgio Godinho. “Agora retomei uma coisa que tinha congelado”, explica. “Estaria pronto para tentar isto há dez anos, mas não sei se conseguiria fazê-lo. Acho que, se calhar, tê-lo-ia realizado de uma forma mais tosca.”

O MySpace dos Superego diz que o grupo fechou portas a 11 de Setembro de 2001. Daí para cá, Cruz registou dois discos a solo. Para chegar aos Diabo no Cruz, várias coisas mudaram. “Tive de entrar num módulo um bocado de guerrilha. Desloquei-me para uma área muito mais associada à expressão do que vai dentro, em que ao escrever canções olho bastante para o que a música tem em comum com outras artes. Foi uma questão de perceber o que um gajo tem para dizer. A única coisa que teria de fazer em termos estéticos era tentar criar uma música moderna que fosse exclusivamente portuguesa. Que não pudesse ser de mais lado nenhum. E o facto de ter vindo para Lisboa e de me dar com pessoas que estão interessadas em criar coisas nessa área fez-me lembrar que isto era algo que sempre quis pôr em prática. E esse contacto também permitiu que pudesse pegar nas coisas mais à frente. Saltei uma data de estações e fui logo para um sítio muito confortável. [“Virou!”] Foi o disco mais confortável, e até mais fácil de fazer, para mim.”

Quando Jorge Cruz aterrou em Lisboa, já conhecia parte do elenco do eixo FlorCaveira/ Amor Fúria: “O João Coração era baterista de uma banda que surgiu depois dos Superego, a FanfarraMotor, que foi de certa forma a primeira ideia parecida com Diabo na Cruz, porque era quase só música tradicional. Tínhamos uma maquetazita, íamos para estúdio, e foi nesse momento que comecei uma carreira sozinho, porque a banda acabou na sala de gravações; tínhamos já combinado trabalhar com o Carlos Guerreiro, com o Paulo Marinho, e tínhamos uma ideia de fusão do rock com [música tradicional]. Em estúdio aquilo não estava a correr bem, havia uma crise meio existencial sobre o que nós queríamos, o grupo desmembrou-se e eu tinha tempo de estúdio comprado. Decidi começar a gravar, à viola, canções que eu tinha, e foi assim que veio a cena do nome próprio. Não foi nada planeado.” A carreira a solo rendeu “Sede” (2003) e “Poeira” (2006), e uma cantiga (‘Nada’) em passagem na novela “Fascínios”, da TVI. Entretanto, “o João Coração queria gravar um disco, e estava super-entusiasmado com o Tiago Guillul e o Samuel Úria. O Manuel Fúria eu já tinha conhecido. Então, um dia, jantámos todos. De repente, descobri perspectivas absolutamente diferentes, mas com afinidades muito grandes, mais em relação ao meu ‘eu’ antigo do que àquilo que estava a fazer naquele momento. Naquela altura, eles viam-me como o gajo que tinha música nas novelas. Além disso, uns são super de direita e eu não sou de direita, são religiosos e eu não acredito em Deus, e isto criou logo ali um despique e uma tensão amigável e interessante. E fomos para Sesimbra gravar”. Em Sesimbra nasceu “Nº1. Sessão de Cezimbra”, de Coração. Entretanto, Cruz também já produziu os álbuns de apresentação d’Os Golpes e de João Só e Abandonados, e co-produziu o novo registo, homónimo, de B Fachada. Confessa que não tem som de marca, mas “gostava que se percebesse que há um cuidado, uma exigência. E gostava que pelo filtro só passassem canções fortes, válidas e bem espremidas”.

Uma das características que Jorge Cruz mais aprecia nesta comunidade de artistas mais jovens é o facto de estarem “comprometidos com uma ideia de identidade. Não lhes faz sentido ser de outra maneira. Vou-te dar uma parangona para tu escreveres, se quiseres acabar com a minha carreira: se fosse escrita uma história da música portuguesa, a minha geração, que é a dos anos 90, merecia um parágrafo muito pequeno em que se dissesse que tinha vergonha de ser portuguesa. E esta não. Estão muito mais à vontade. No meu tempo, escrever em português soava sempre mal. Essas são questões que, para estas pessoas, não fazem qualquer sentido.” A geração de Jorge Cruz era a geração do fazer-como-lá-fora? “Era.”

“Virou!”, pelo contrário, traz 11 canções feitas por quem tem ouvidos cosmopolitas mas os pés lucidamente assentes no rectângulo. É “desconstruir um bocado a imagem que nós temos do que é o sagrado português e lançá-lo para a confusão do povo. A nossa intenção é andar pela música popular portuguesa, e a ideia é trabalhar no proibido. É um bocado: estamos a fazer uma grande rockalhada, o que é que era proibido fazer agora? Era tocarmos mesmo um corridinho. É tentador metermo-nos por aí. [Pausa] No fundo, é capaz de haver um lado meio provocatório nisso”.

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