Depeche Mode

Textos originalmente publicados em Outubro de 2005 no Blitz.

HERÓIS DA CLASSE OPERÁRIA
Lembram-se como os DEPECHE MODE faziam canções electrónicas de grande fulgor que não pareciam electrónicas? Em Playing the Angel, eles redescobriram o segredo. Texto: Jorge Manuel Lopes, em Paris.

Playing the Angel é o primeiro álbum em quatro anos dos Depeche Mode. Disco concebido com rara rapidez e evidente fulgor criativo, deverá satisfazer não só os que vêem Martin Gore, David Gahan e Andrew Fletcher como arquitectos de pop de base electrónica muito resistente à usura do tempo, como também os que participaram na sua ascensão, na primeira metade da década de 1990, a uma espécie de terceira via relutante na constelação dos gigantes rock de estádio.
Depois do período de conquista planetária (com o álbum Songs of Faith and Devotion, de 1993, e respectiva mega-digressão) e de uma ressaca agitada pelo abandono de Alan Wilder e pela tentativa de suicídio de Gahan, os Depeche Mode entregaram um par de discos de orientação mais clínica e sombria, sob a supervisão dos produtores Tim Simenon (Ultra, de 97) e Mark Bell (Exciter, 2001). Playing the Angel rompe a tradição recente e introduz algumas novidades: um produtor (Ben Hillier) e um escritor de versos – David Gahan –, rompendo o espaço de hegemonia criativa de Martin Gore. Uma «intromissão» há bastante tempo reivindicada por Gahan e que faz parte de um longo processo de distribuição de poderes que, pelo menos no passado, foi pretexto para muita tensão interna.

Paris, meados de Setembro. Gore, Gahan e Fletcher estão distribuídos por outros tantos quartos de hotel no centro da cidade em conversa com os media europeus. Sentem-se no ar e nas entrelinhas da conversa que se segue com Andrew Fletcher vestígios da supracitada tensão entre os três Depeche Mode, mesmo que gerida com a experiência que 25 anos de carreira devem permitir.
A mais-do-que-opulenta loja da Cartier, com porteiros-bisarma de auriculares em riste, é mesmo ali ao lado. Fletcher é adepto do Chelsea e prova, uma outra vez, que o apelido Mourinho tornou-se, em definitivo, palavra-passe no diálogo luso-britânico.

Nas cópias promocionais de Playing the Angel enviadas à imprensa, em vez de Depeche Mode o álbum é atribuído a uns Black Swarm, e o disco surge com o título postiço Dark Force.Black Swarm [Enxame Negro] é o que chamamos aos fãs alemães, porque eles são muitos e estão sempre vestidos de preto. Dark Force acho que é apenas uma variação em torno do mesmo tema.

No comunicado de imprensa do novo álbum, David Gahan é citado a afirmar que sentia haver assuntos por resolver desde a edição de Exciter em 2001. Houve momentos, nos últimos quatro anos, em que não tiveram a certeza se viria a existir um disco novo dos Depeche Mode?Creio que houve um período, quando o David andava a promover o seu álbum a solo [Paper Monsters, de 2003], em que ele dizia coisas um pouco estranhas nas entrevistas. Mas o David tende a ser assim durante as entrevistas – encara cada entrevista como uma sessão de terapia [risos]. Ele acabou por contribuir com algumas canções para o novo álbum. O David parece uma pessoa completamente mudada. Antes de Exciter e do seu disco ele começou a sentir-se um pouco frustrado porque é o cantor numa banda muito grande mas não escreve as letras, o que é bastante invulgar. Só existe mais um punhado de bandas assim: lembro-me dos The Who e dos Oasis nos primeiros tempos. Penso que [David Gahan] não se sentia muito envolvido no processo [de criação dos temas]. Com o seu álbum a solo ele tentou de certa forma justificar-se perante os jornalistas que, obviamente, lhe perguntavam porque é que ele não havia escrito canções antes. O que aconteceu, desde então, é que ele escreveu algumas coisas para este novo disco. A sua confiança e auto-estima parecem estar bastante mais elevadas desde que realizou o álbum a solo. Desta vez, o ambiente no estúdio foi muito, muito bom, provavelmente o melhor em muito tempo, e tem-se mantido assim, mesmo durante estas actividades promocionais. Por isso, acho que este é um bom momento para fazer parte dos Depeche Mode. Nunca afirmámos, nem mesmo o David durante essas entrevistas, que estávamos a realizar a última digressão ou que havíamos feito o último álbum dos Depeche Mode. Nunca dissemos nada desse género. Obviamente, já houve uma ou duas ocasiões em que nos interrogámos sobre se seria possível fazer outro disco. Todavia, numa carreira de 25 anos, uma ou duas ocasiões não é muito. Qualquer pessoa que mantenha o mesmo emprego normal durante 25 anos deve passar por momentos em que acha que aquilo vai acabar, ou que deseja que acabe.

De quanto tempo necessitaram para fazer Playing the Angel?Quando entrámos para o estúdio, creio que o David tinha à volta de 16 canções, e o Martin tinha cinco. Acontece que o Martin foi compondo à medida que se avançava na feitura do álbum. Começámos [a preparar o disco] em Janeiro, e o álbum é lançado em Outubro – é um ritmo muito bom para os Depeche Mode. Despendemos 17 semanas a gravar, e acho que uma das razões [para a rapidez na execução do disco] teve a ver com o produtor, o Ben Hillier. Conhecemo-lo no fim do ano passado e revelou-se uma excelente escolha: é jovem, enérgico, com uma visão própria e uma atitude tipo reitor de liceu, ordenando-nos o que fazer. Teve um papel muito importante.

O que conheciam do trabalho de Ben Hillier que levou a banda a achar que seria uma boa escolha para produtor?
O Daniel Miller [fundador da Mute, editora de sempre dos DM, com quem sempre colaborou] é o homem-chave neste processo. Quando o Daniel decide fazer um disco ele faz umas pesquisas, junta uns quantos nomes, encontra-se com os candidatos a produtor e restringe a lista a um punhado de pessoas. Depois, entramos em contacto com este pequeno grupo e escolhemos. O Ben trabalhou com os Blur, Elbow… fez muita coisa mas, estranhamente, nada de electrónico. Além disso, não era grande fã dos Depeche Mode. É óbvio que nos conhecia, comprara uns singles, mas não era exactamente um adepto ferrenho. No primeiro dia de estúdio ele apareceu com uns vinte sintetizadores analógicos da sua colecção. Imaginávamos estar a trabalhar com um produtor conceituado, sem dúvida, mas aí percebemos que ele também era um amante de música electrónica. Fizemos umas 11 ou 12 canções nas primeiras semanas de gravações.

As canções do novo álbum têm uma concisão que não se sentia nos últimos dois discos. Não exactamente uma concisão pop, mas são temas mais…Directos ao assunto? Sim, acho que são. Mais directos num sentido rock’n’roll tipo Elvis Presley. É extremamente complicado avaliar um disco feito por nós próprios até terem passado três, quatro ou seis meses desde a sua conclusão. Pensamos que é um bom disco, e temos que confiar no instinto que levou à escrita destas canções e no facto delas terem soado incrivelmente bem da primeira vez que as tocámos em estúdio. É que, depois, tivemos que escutar cada canção umas mil vezes [risos], o que complica a nossa avaliação.

Esse retorno a canções mais concisas e directas terá algo a ver com uma vontade de mostrar à avalanche de bandas novas fortemente influenciadas pela pop do início dos 1980s como é que essas coisas se fazem?Isso soa bem em teoria mas, na prática, não é assim. Sentimos muito orgulho do facto de bastantes pessoas, de várias proveniências musicais, parecerem gostar dos Depeche Mode, referindo-se a nós em artigos, mas [o som do novo álbum] foi apenas o resultado das ideias do Ben – de certa forma, da inocência que provinha do seu desconhecimento da discografia dos Depeche. Se tivéssemos trabalhado com outra pessoa, uma pessoa mais parecida com o Tim Simenon ou o Mark Bell, é provável que lançássemos outro álbum parecido com os dois últimos. Mas, por exemplo, e por muito que ache o Exciter um álbum realmente bom, a verdade é que era um registo algo indulgente e sombrio.

Quão política é a banda Depeche Mode?Não é. Escrevemos canções sobre a vida quotidiana, os problemas que as pessoas enfrentam no dia-a-dia. Individualmente temos uma consciência política profunda, mas não como banda. Admiramos bastante pessoas como o Bob Geldof ou Bono, mas defendemos que os assuntos de natureza política têm de ser resolvidos por políticos. A música não responde a grandes questões políticas.

Não se sentem impelidos a reagir, através da música, a importantes acontecimentos planetários, como o 11 de Setembro?Falamos uns com os outros sobre essas coisas mas não me parece que o Martin, que faz as canções, se sinta confortável a escrever sobre esse tipo de assuntos.

Quão religiosa é a banda Depeche Mode?Não somos religiosos, embora todos tenhamos tido ligações com a religião na juventude. Obviamente, esse é um dos tópicos centrais do Martin em termos de composição, mas ele não está ligado a qualquer organização religiosa. Ele escreve sobre assuntos espirituais.

Qual é a sua motivação para estar nos Depeche Mode em 2005?A motivação é querer ser relevante. Continuar a fazer música relevante. E tentar… provocar emoção nas pessoas através da nossa música. Também há o aspecto do legado [da banda], que tem a ver com as nossas raízes profundas na classe operária, aquela coisa de criar algo a partir do nada. Orgulhamo-nos muito disso, e queremos que as coisas continuem.

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Celebrações a negro
O bê-á-bá dos Depeche Mode em 5 passos

Some Great Reward (Mute, 1984) -- Depois da encarnação inicial versão Nova Pop com Vince Clarke ao leme, e depois da troca deste por Alan Wilder e pelo mergulho em ambientes mais industriais, em fuga ao beco electropop, o quarto álbum dos DM fixa o talento de Martin Gore num leque mais aberto de recursos estilísticos. Contém «Somebody», «People Are People», «Master and Servant», «Blasphemous Rumours».

Black Celebration (Mute, 1986) – A escala das canções DM começa a agigantar-se num álbum consistente. Uma amplitude obtida, em boa parte, à boleia de temas lentos. Os arranjos vão-se adensando. A voz de Gore, mais presente do que é habitual, ajuda à concentração de nuvens negras. Contém «A Question of Lust», «A Question of Time», «Stripped».

Music for the Masses (Mute, 1987) – A derradeira pedra da segunda encarnação dos DM e momento de transformação do quarteto em estrelas rock, as estradas e os estádios dos EUA à sua disposição. Imaginário dois terços retro-futurista, um terço soviet-chic, devidamente ilustrado num lote de preciosos telediscos monocromáticos dirigidos por Anton Corbijn, uma espécie de DM honorário, essencial na definição da identidade visual da banda. Contém «Never Let Me Down Again», «Strangelove», «Behind the Wheel».

Violator (Mute, 1990) – O álbum que cumpre as condições básicas do modelo «se comprar apenas um disco dos Depeche Mode na sua vida…». Marca, em simultâneo, o pico da forma e o pico da fama (seis milhões vendidos) de Gore + Gahan + Wilder + Fletcher. No caso de David Gahan, marca também a aceleração na auto-estrada dos excessos. Com o contributo essencial na produção de Flood, primeira excepção significativa à regra DM de recorrer maioritariamente a colaboradores da casa Mute para os papéis técnicos principais. Nove canções que já não são pop sintética e vão bem para lá do rock – é o modelo de assimilação pós-moderno transformado, por uma vez, em material clássico. Contém «World in My Eyes», «Personal Jesus», «Enjoy the Silence», «Policy of Truth».

Songs of Faith and Devotion (Mute, 1993) – O mais americano dos registos DM, de novo com Flood na cadeira de produtor. Passa rasantes tecnológicas ao gospel e aos blues. Foi pretexto para a primeira digressão mundial do quarteto com paragem em Lisboa e Porto. Encerra mais um capítulo na história DM. Seguiu-se a saída de Alan Wilder, a tentativa de suicídio de Gahan e o retorno a paisagens mais digitais. Contém «I Feel You», «Walking in My Shoes», «Condemnation», «In Your Room».

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Depeche Mode
Playing the Angel
Mute/EMI

No princípio, parece que Playing the Angel é um disco sobre dor e pecado em cenário bíblico, mas o correr das canções vai mostrando outra coisa. Há maquinaria industrial a marcar o ambiente geral mas o que este disco é, é um disco de águas subterrâneas, subterraneamente agitadas, resguardadas da claridade exterior ou indecisas sobre o desejo de exterior ou a correr para o exterior. Uma dúvida expressa em «Suffer Well» enquanto sobe a pulsação e a Guitarra Depeche Mode, esparsamente melódica mas intensamente sombria e aberta, entra em cena. Quase todas as faixas são um clássico de interacção entre luz e escuridão.
«Precious», o single, pode ser mais do que «World in My Eyes Parte 2». Mesmo que não necessite, graças a um refrão que já é notável por conta própria na escala Pop. Há quem seja bom em canções de amor mas, como se nota, há quem seja melhor em canções de divórcio.
Em «Macro», canção de escravos, Martin Gore é Nina Simone. A outra canção cantada por Gore, «Damaged People», que por acaso é o melhor momento do álbum, vem atordoada pelo toque de cristal enferrujado de algo com pinta de glockenspiel e é como um poema conjugal montado a partir de estilhaços recolhidos no Dia Seguinte.
Playing the Angel inquieta-se. É ponderadamente agreste. Tem muitas cores em tom escuro mas, felizmente, nenhuma delas é o preto. Vai ser um disco de platina confortavelmente desconfortável. E ganhar o Óscar para melhores efeitos especiais.

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