Simon Reynolds

(Entrevista originalmente publicada em duas partes pelo Blitz em Novembro de 2002. Esta é uma versão mais extensa.)

SIMON REYNOLDS – RUIDOSO COMO O FUTURO (I)

Simon Reynolds é o mais importante e respeitado crítico musical surgido nos últimos 16 anos. A criatividade da sua escrita e a largueza de vistas com que aborda a paisagem musical colocou-o no sítio certo e no momento certo de quase todas as grandes mutações sonoras da música popular desde o final dos anos 80. Na primeira parte da entrevista com este venerável cidadão britânico sediado em Nova Iorque, fala-se do seu papel na última grande época dourada da imprensa musical, ocorrida a bordo do extinto semanário Melody Maker. As (r)evoluções musicais e a experiência americana relatam-se na próxima semana.

Você começou a trabalhar no Melody Maker em meados dos anos 80...
Sim. Antes disso, escrevi para uma espécie de fanzine. Nós gostávamos de pensar nela como um jornal pop, embora fosse, de facto, uma revista amadora. Era muito bem produzida, continha ensaios em vez de entrevistas, e raramente fazíamos críticas a discos. Nessa época, chamávamos «thinkpieces» aos ensaios.

Essa publicação chamava-se Monitor.
Era feita por mim, pelo Paul Oldfield e pelo David Stubbs, que também foram trabalhar para o Melody Maker. Havia também um tipo chamado Chris Scott, e uma mulher, Hillary Little. Éramos a equipa central. [A fanzine] Recebeu muita atenção de certos domínios do meio académico, nomeadamente da área de Estudos Culturais, assim como de alguns críticos: o Jon Savage e o Simon Frith eram fãs, e apoiavam a publicação mencionando-a nos seus textos. Escrever para a Monitor foi a primeira coisa que fiz. Depois, entrei para o Melody Maker em 86.

Alguns dos seus textos para a Monitor podem ser encontrados no primeiro livro que lançou, «Blissed Out – The Raptures of Rock» [ed. Serpent’s Tail, 1990].
Creio que não. Todos os artigos compilados em «Blissed Out» eram do Melody Maker. As coisas que fiz para a Monitor nunca foram reunidas [em livro]; são um pouco primitivas, de uma fase ainda muito inicial. Algumas das ideias que desenvolvia nessa altura reapareceram no Melody Maker em formatos mais bem estruturados. Mas foram um bom campo de treino. Suponho que a raison d’être [da Monitor] tinha a ver com o facto de que, nessa época, a imprensa musical britânica havia deixado de publicar extensos textos teóricos sobre música, que eram coisas que nos agradavam bastante. Ou seja, sentimos que havia ali uma lacuna. Mas foi uma boa época. Nessa altura, estava no desemprego por opção [risos], e fui desenvolvendo as minhas ideias. Não escrevia muito, mas pensava, lia… Essas coisas.

Suponho que foi o seu trabalho na Monitor que acabou por chamar a atenção do Melody Maker.
Na verdade, não. A certa altura, percebi que não ia arranjar emprego se continuasse a enviar [para os jornais] as minhas longas teses. Por isso, decidi remeter-lhes amostras de algumas críticas. No entanto, o David Stubbs escreveu um extenso artigo a gozar com uma peça do Melody Maker acerca de bandas em relação às quais devíamos estar atentos e, pouco depois, o Melody Maker ofereceu-lhe emprego [risos]. Acho que gostaram da atitude de escárnio dele.

A entrada quase simultânea de todos os ex-Monitor, mais do que uma situação pontual, foi peça importante de uma nova geração de escribas que, em meados de 80, chegou ao Melody Maker. Correcto?
Sim. Boa parte dessas movimentações estavam relacionadas com o Steve Sutherland, que, na altura em que comecei, era o editor de críticas, e que, pouco depois, chegou a editor das entrevistas e artigos de fundo. Com o apoio do director, Allan Jones, ele contratou uma data de pessoas, pois tencionava transformar o Melody Maker. O jornal encontrava-se num ponto muito baixo em termos de vendas e de prestígio. Naquele contexto, as coisas só podiam melhorar. Além disso, ali ainda era possível arriscar, em contraste com o NME, que se encontrava de certa forma paralisado pela sua própria reputação e posicionamento como O jornal de música, que teve Nick Kent e Charles Shaar Murray nos anos 70, Tony Parsons e Julie Burchill durante o período punk, e Paul Morley nos anos seguintes. Eles [NME] tinham que estar à altura de um legado extraordinário e não sabiam o que fazer a seguir, e resolveram entrar numa fase de reacção contra a sua própria história, deixando de contratar escritores intelectuais, pois achavam que isso tinha prejudicado o jornal, tornando-o demasiado desfasado dos leitores. Ou seja, nessa altura [meados de 80], como nenhum escritor intelectual conseguia entrar para o NME, que em tempos teria sido o sítio mais lógico para trabalhar, o Steve Sutherland levou-os todos para o Melody Maker. Além de quase toda a gente da Monitor, ele também foi buscar o Jon Wilde e o Chris Roberts ao Sounds [jornal que completava o trio de publicações musicais semanais britânicas de referência nos anos 70 e 80; fechou portas em 1991] e, um pouco antes, os Stud Brothers. Sem esquecer o Frank Owen, que foi bastante importante para o Melody Maker. Creio que ele ainda estava a fazer a sua tese em Estudos Culturais quando foi para o jornal. Ele era uma grande apreciador de música negra, e trouxe uma abordagem muito interessante, fresca e inovadora em relação ao hip-hop e ao house, algo totalmente diferente do que o NME fazia nessa altura, e que era, digamos, politicamente correcto, uma abordagem à música negra própria da esquerda tradicional. Sim, houve uma época em que o Melody Maker era deveras formidável, com uma equipa muito forte. Toda uma geração foi lá parar, e o NME ressentiu-se bastante por não ter contratado estas pessoas. Foi espantosa a rapidez com que o Melody Maker foi capaz de mudar a sua imagem, de jovem, bonito e cool, para o jornal que os miúdos inteligentes que quisessem conhecer música nova podiam ler. Exigiu um grande esforço da nossa parte, foi precisa muita determinação, mas ficámos bastante satisfeitos com o resultado. Para nós, naquela altura, era como se se tratasse de uma missão. Mas isso aconteceu no Melody Maker apenas porque era o sítio onde nos encontrámos, e o sítio mais disponível para os nossos objectivos. Pensámos, «o NME não está a cumprir a sua função – não fala da nova música nem propõem discussões interessantes». Esse era o papel da imprensa musical quando eu era miúdo, algo que mal se conseguia esperar para ler todas as semanas porque havia trocas de ideias entre os escribas, desacordos, lutas, rixas, e os leitores escreviam a reagir; também havia discussões entre jornais de música – os tipos do Sounds implicavam com o que se passava no NME, ou vice-versa... Eu e os meu camaradas queríamos que a imprensa musical voltasse a ser tão excitante como no passado e houve, de facto, um par de anos naquele jornal em que tivemos grandes discussões internas, enquanto travávamos batalhas intelectuais com o NME. Os leitores também ficaram bastante entusiasmados. Alguns não gostavam da nossa abordagem, mas recebíamos cartas óptimas. A principal característica estrutural da imprensa musical britânica é que ela acontece numa base semanal, o que faz uma grande diferença. Com uma revista mensal não é possível obter o mesmo tipo de energia. Se for semanal, as reacções dos leitores são mais rápidas, os escribas pegam em ideias expostas em críticas que outros escreveram na semana anterior e desenvolvem-nas... É uma coisa excitante, ver isto acontecer semana a semana.

A primeira vez que li um exemplar do Melody Maker foi em 1987...
Apanhou-o no momento em que estava a ganhar balanço. Creio que ele prosseguiu, em muito boa forma, durante um bom período dos anos 90, mas o pico de entusiasmo ocorreu em 87, 88. O meu grande marco de referência em relação ao nível de entusiasmo... Nessa altura, eu fazia parte da redacção do Melody Maker e, na Grã-Bretanha, temos direito a quatro ou cinco semanas de férias por ano. Em 87, não gozei nenhum dia de férias. Estava tão excitado, havia tanta sobre o qual desejava escrever, que não queria perder sequer uma semana. E como as férias não usufruídas acumulam para o ano seguinte, em 88 tive dez semanas de férias [risos]. Em Novembro de 88, tirei uma semana e fui para os Estados Unidos. Estava em férias, mas não resisti e entrevistei umas bandas. Foi um percurso empolgante. E quando as coisas mudaram em 89, tive um sentimento de ressaca e de quebra.

O que aconteceu em 1989?
O Steve Sutherland apoiava-nos bastante, dava-nos bastante margem de manobra para escrever ensaios e artigos de fundo, e colocar bandas aventureiras na capa. Achou-se que o jornal estava a resvalar demasiado para a auto-indulgência e o intelectualismo. É importante testar a elasticidade dos leitores, mas sem presumir que toda a gente sabe do que estamos a falar. Nesse momento, acho que a nossa reacção foi demasiado no sentido inverso. Decidimos que o jornal devia apontar rumo à pop mas, infelizmente, aquele não era um bom momento para virar para a pop, porque nada acontecia nesse campo. Em 88, tínhamos bandas como os Butthole Surfers, Loop, Spacemen 3, Front 242, Young Gods, A. R. Kane ou Dinosaur Jr na capa. Na primeira metade de 89, pusemos pessoas como a Michelle Shocked e o Holly Johnson na capa, artistas que não eram assim tão bons, nem sequer especialmente populares, e que nada tinham a ver, nem com os leitores tradicionais do Melody Maker (que, nessa altura, deviam ser todos góticos; havia muita gente que gostava dos Cure e dos Mission), nem com os novos leitores intelectuais que havíamos captado. Foi uma opção muito bizarra. Felizmente, as coisas voltaram a melhorar por causa de Madchester, tínhamos bandas como os Happy Mondays e os Stone Roses [na capa] e, pouco depois, chegou o grunge, e o Melody Maker voltou a ser, de certa forma, um jornal de música underground, só que, desta vez, as bandas underground que dávamos a conhecer eram potencialmente mais acessíveis, como os Nirvana ou os Ride. Todas as bandas pós-My Bloody Valentine eram relativamente underground porque tinham ainda pouco tempo mas, ao contrário dos Butthole Surfers, elas faziam canções de três minutos e tinham potencial para ter grande sucesso. Era aí que o Melody Maker encontrava o seu nicho nos anos 90, naqueles que vinham da indielandia mas tinham possibilidade para chegar às tabelas de vendas. E ficaram por aí durante algum tempo, até à britpop.

No final dos anos 90, você dizia que a imprensa musical entrara num processo de morte lenta. Mantém essa opinião?
Sim, claro. O NME não é, sequer, uma sombra do que já foi. Tenta ser um jornal de música semanal de interesse geral numa altura em que... A fragmentação começou nos anos 80, mas as coisas chegaram a um ponto em que a Kerrang, uma revista de metal, vende mais que o NME. Ou seja, uma publicação supostamente especializada numa fracção do rock é um órgão de imprensa mais popular, com mais leitores que um jornal generalista de pop e rock. O NME tenta cobrir o hip-hop, r&b, música indie, nu-metal, mas não existe uma audiência generalista, apenas fragmentos. As pessoas gostam de um desses estilos e detestam os outros. Se gostares de nu-metal, detestas r&b ou UK Garage. No fundo, isto tem tudo a ver com cobardia, com as alterações rumo a uma escrita ao serviço de consumidores, com artigos cada vez mais pequenos, críticas com 150 palavras. As pessoas não conseguem dizer nada em tão pouco espaço, e quem tiver alguma coisa para dizer é desencorajado de entrar nesse mundo.

O conceito de imprensa musical semanal morreu?
Não sei. Isso não é intrínseco ao facto de a música se ter fraccionado tanto. Sempre achei que o Melody Maker teve uma oportunidade de se tornar num jornal capaz de cobrir todas as coisas underground [em 87, 88], e ignorar todo o mainstream, se tivesse prestado maior atenção ao hip-hop, ao acid-house e às raves. Mas talvez isso não resultasse. Se calhar, quem gostava de acid-house não estaria interessado em ler sobre o assunto num jornal que também trazia artigos sobre os Dinosaur Jr. Mas teria sido interessante pelo menos tentar. É difícil imaginar o NME a voltar ao que já foi, e ficarei surpreendido se ele sobreviver durante muito mais tempo. O que sucedeu foi uma tremenda explosão na cobertura [de música] na televisão, nos jornais diários. [Um semanário musical] Já não tem qualquer função. Houve um tempo em que o NME, o Melody Maker e o Sounds eram os únicos sítios onde se podia ler sobre estas coisas. [O contexto actual] Enfraqueceu bastante as publicações semanais.


SIMON REYNOLDS – RUIDOSO COMO O FUTURO (parte 2)

Depois de evocar os tempos dourados da imprensa musical britânica entre o fim dos anos 80 e meados de 90, a segunda parte da entrevista com o jornalista Simon Reynolds faz escala em quase todos os momentos significativos da música popular na última dúzia de anos. Momentos testemunhados em directo, reflectidos e baptizados pela figura central da crítica musical neste dias.

Recentemente, afirmou que a imprensa musical americana é, neste momento, mais relevante e competente do que a britânica. Onde estão as grandes diferenças?
Bom, as coisas podem já ter mudado um pouco desde que fiz esse comentário. Há muita escrita de qualidade na América. O país é muito grande, cada jornal tem o seu crítico de rock no quadro, e há uma série de títulos, a que chamam de «alternative weeklies», publicações de esquerda como o «Village Voice» [de Nova Iorque], em todas as cidades suficientemente grandes para ter uma população boémia ou em locais onde há uma grande concentração de estudantes, como Austin ou São Francisco, e que falam do que se passa nessas cidades, em termos políticos e culturais, e trazem roteiros de actividades. Todos estes órgãos facultam espaços para as pessoas escreverem [sobre música]. Depois, há as grandes revistas, como a «Spin» e a «Rolling Stone», que têm albergado escrita rock de qualidade mas que, neste momento, estão a ressentir-se um pouco das pressões do mercado e do aparecimento de uma publicação chamada «Blender», que adoptou um modelo britânico, baseado na «Q», de imensas críticas muito curtas e artigos não opinativos e cheios de informação. Como consequência, essas duas revistas [«Spin» e «Rolling Stone»] ficaram menos abertas a escrita ousada. Trabalhei na «Spin» durante um ano e, provavelmente, apanhei a fase final [da época dourada]. Eles pagavam muito bem e cobriam as despesas que permitiam que as pessoas viajassem para elaborar artigos devidamente investigados. Desta forma, conseguia-se fazer jornalismo a sério. Creio que essa é a grande diferença entre a imprensa musical americana e britânica – eles [americanos] estão muito mais comprometidos com uma ideia de jornalismo, de reportagem. Todas as histórias são sujeitas a confirmação prévia dos factos. As publicações têm verificadores de factos [«fact checkers»] nos seus quadros redactoriais, que vão confirmar se tudo o está escrito é verdadeiro. Quando se entrevista alguém, é suposto enquadrar essas declarações com citações secundárias de outras pessoas. Quando tive que lidar com este modo de funcionamento pela primeira vez, achei que era um enorme aborrecimento, porque estava habituado ao modelo britânico, em que nos limitamos a entrevistar a banda. Tive que me habituar ao trabalho extra, mas obtém-se uma melhor história. É jornalismo como deve ser. Recolhem-se declarações de outras pessoas em redor da banda, de pessoas que não gostam da banda, de antigos colaboradores, de músicos de outros grupos que admiram o seu trabalho... Se se fizer um artigo sobre uma determinada cena ou estilo musical, recolhe-se uma grande variedade de citações de pessoas diferentes. A maior parte das pessoas que trabalha em revistas na América andou em escolas de jornalismo, algo que é extremamente raro na Grã-Bretanha, onde quase todos são completos amadores, autodidactas que frequentaram a universidade e baseiam a sua escrita em coisas que leram no tempo livre, de uma forma totalmente dispersa; de onde se pode obter uma escrita realmente má, mas também é possível fazer coisas que uma pessoa com antecedentes académicos rígidos não consegue alcançar. Quando comecei, não fazia a mais pequena ideia como é que se estruturava uma peça jornalística. O que se obtém [na imprensa musical americana] é uma escrita bastante competente, à qual falta parte da impetuosidade e excentricidade da escrita [musical] britânica, mas também acaba por ser mais sólida, documentada, autorizada e, imagino, conscienciosa e responsável. É, no fundo, a diferença entre jornalismo e... ia dizer crítica mas, na verdade, a maior parte da escrita musical britânica também não é crítica pura, antes uma mistura confusa de todas estas coisas, de jornalismo de imitação [risos], crítica sem fundamento e entusiasmo desvairado.

No início dos anos 90, parece ter ocorrido uma grande mudança no seu espectro de interesses musicais. Até aí, você procurava novas possibilidades dentro do formato rock, e escrevia sobre coisas como os A. R. Kane, My Bloody Valentine e The Young Gods. Depois, a sua atenção desloca-se rumo à música de dança electrónica da era rave e, mais tarde, o jungle e respectivas derivações. O que originou essa mudança?
Eu sempre me interessei por música de dança, desde os tempos do disco-sound, passando pelo seu período final, em que se tornou mais electrónico. No entanto, essa faceta nunca moldou o meu estilo de vida – eu não passava as noites em clubes; aliás, eu nem gostava de clubes. Parece que todos se esqueceram quão desagradáveis eram os clubes na Grã-Bretanha antes do ecstasy e do acid-house. As pessoas não se divertiam muito, estavam mais interessadas em fazer pose, mostrar as roupas e parecer cool. Em termos culturais, não era uma área muito atraente, mas gostava dos discos de dança que me vinham parar às mãos. A partir do momento em que ir às raves se tornou um estilo de vida, tudo isso tornou-se realmente irresistível. Progressivamente, os concertos de rock pareciam incapazes de transcender certos limites. Pelo contrário, nas raves havia uma participação tremenda e total do público, que era uma componente tão importante como a música ou os DJ’s. A fase em que me envolvi [nas raves] é muito anterior a toda a hierarquia do DJ como estrela, que acabaram por tomaram conta de tudo. Eu não sabia, nem queria saber, quem eram os DJ’s na maior parte dos clubes e raves a que ia. Geralmente, nem sequer sabia que música estava a ouvir. O importante era o acontecimento em si. Tudo isso inspirou-me bastante, assim como as rádios piratas; mais uma vez, o interesse tinha a ver, também, com o anonimato da coisa, e com aquele fluxo incessante de música, como uma máquina descontrolada e cheia de ideias. Foi um período muito excitante, um pouco como a adolescência que eu não tivera na altura devida. Acabou também por ser revitalizante, pois chegou no momento certo. Eu tinha parado em termos intelectuais e de ideias em relação ao rock; deixara-me conduzir para um beco ao escrever sobre bandas que confirmavam as minhas teorias. Isto é, eu desenvolvera uma série de teorias à volta do aparecimento de bandas como os A. R. Kane, mas essas teorias começaram a revelar-se restritivas, pois eu estava sempre à procura da mesma coisa, sempre à procura da beatitude no mesmo sítio. Havia outro aspecto importante na música de dança nessa época: ela lembrava-me coisas que havia gostado no início dos anos 80, como os Cabaret Voltaire e 23 Skidoo, aquela música de dança experimental branca e tudo o que está muito na moda agora, como o punk-funk, avant-funk, os A Certain Ratio... Havia um eco estranho de tudo isto [na música de dança da era rave], só que essa música não tinha sido muito popular no seu tempo, enquanto que esta música de dança estranha e deformada era um enorme sucesso. Tocar estes sons no início dos anos 80 para uns quantos rapazes novos, sérios, de óculos e vestidos de preto, ou para uma enorme multidão prestes a enlouquecer, parecia fazer toda a diferença. O facto de agora haver toda uma subcultura à sua volta, com um calão próprio, ideias e infraestruturas (as rádios piratas), a genuína ilegalidade de tudo aquilo, esse lado underground e subversivo tornava as coisas mais relevantes. Era uma embalagem irresistível. Também foi a primeira vez em que estive no sítio certo, na altura certa. Até aí, eu lia sobre os movimentos depois de eles acontecerem, como o punk. Bom, suponho que tinha razão em relação aos My Bloody Valentine, mas nunca ganhou a dimensão necessária para se tornar um movimento.

Depois da sua mudança para Nova Iorque em 1992, começou a olhar para o r&b e o hip-hop.
No início dos anos 90, ia a Nova Iorque com a minha namorada, agora esposa [Joy Press, jornalista do «Village Voice»] por períodos de seis semanas, e não pude deixar de reparar, na MTV e noutros canais, nestes temas com ritmos muito interessantes, canções deveras estranhas. A primeira vez que escrevi acerca de r&b foi em 94, numa coluna para o «Melody Maker» onde fiz crítica a umas coisas que, na altura, ainda eram chamadas de swingbeat, como as SWV. Depois, só voltei a prestar atenção com o primeiro disco do Timbaland, o «One in a Million» [de Aaliyah]. Havia uma espécie de cena rave em Nova Iorque, mas só a estação de rádio comercial de rap Hot 97 tinha algo parecido com a vibração que se sentia com as estações rádio piratas de Londres. Não é, nem por sombras, tão caótica como uma rádio pirata, mas tem um pouco da sua essência, aquela energia de rua. Nessa altura, estava a ser editado muito rap interessante; aliás, creio que o rap tornou-se sonicamente mais apelativo numa espécie de efeito secundário do que estava a acontecer no r&b. Estranhamente, o sucesso do r&b foi aumentando à medida que os ritmos se tornavam mais interessantes. O Timbaland começou no r&b, antes de ser requisitado pelas pessoas do rap. Depois, chegaram uma série de novos produtores ao rap, como os Swizz Beatz e os Neptunes. A outra influência do r&b que tornou o rap interessante é que se começaram a ouvir temas rap com refrões. Nunca gostei muito do rap underground porque ele era bastante anti-pop. «Antipop Consortium» sintetiza tudo isso. Eles [rap underground] sentem desdém pelas canções rap com refrões e qualquer outra referência ao r&b, têm uma visão muito retrógada, uma espécie de equivalente hip-hop do rock indie, onde se acha que as coisas eram melhores no passado, «vamos retornar aos valores antigos», aos loops simples de breakbeat que o Premier costumava criar. São muito snobes e esotéricos. Por isso, fiquei extremamente entusiasmado pelo... pode-se chamá-lo de rap mainstream, pois vende em quantidades colossais, mas, por outro lado, é completamente underground, pois trata-se de uma música bastante dura e agressiva. Chamo-lhe rap de rua, mas é o tipo de coisa que pode chegar ao primeiro lugar da tabela de álbuns, sem deixar de apresentar uma visão cruel e violenta do mundo.

Na edição de Maio de 1994 da revista «Wire», no artigo «Shaking the Rock Narcotic», você cria a designação pós-rock, onde inclui bandas como os Main, Seefeel, Disco Inferno, Pram, Insides, Moonshake, Ice, Bark Psychosis ou Papa Sprain.
Basicamente, continuo a achar que se tratava de um conceito sonoro. Em 93, 94, 95, fazia-se música muito interessante [nos domínios do pós-rock] – sobretudo coisas britânicas como os Seefeel, Disco Inferno, Pram, Laika, etc. –, mas tornou-se aborrecida quando passou a ser apenas rock instrumental simplório com leves inflexões de jazz ou dub. Os Tortoise fizeram aí uns três temas fantásticos, mas os seus últimos álbuns têm sido bastante macios. Durante a pesquisa para o livro sobre o pós-punk, tenho reparado que o termo pós-rock já circulava nesse tempo [1978-1984]. As pessoas qualificavam de pós-rock tanto a música dos PiL e bandas similares, como a «nova pop» dos Human League, Heaven 17 e ABC, no sentido em que todas elas haviam abandonado os preconceitos culturais e a ideologia da cultura rock.

Ultimamente, você debruçou-se, com entusiasmo, sobre o UK Garage. Não acha que o género atingiu uma espécie de pico tardio com «Original Pirate Material», de The Streets?
Sim, de certa forma. É um disco fantástico, o meu favorito deste ano, mas não sei se ele tem grande expressividade na cena [UK Garage]. Foi editado pela Locked On, que está mesmo no coração do movimento, mas muita gente dessa área acha que é um disco demasiado inteligente. Suspeitam do tipo [Mike Skinner], acham que ele não faz parte da cena. Quando sintonizo as rádios piratas [britânicas], quase nunca ouço The Streets. Além disso, ele foi nomeado para o Mercury [Music] Prize, o que, aos olhos da cena garage, é um factor desfavorável – é encarado como alguém que pegou no estilo e o tornou, de certa forma, aceitável, inteligente e intelectual. É uma pena, pois trata-se de um disco magnífico. O que é produzido, neste momento, sob o nome de garage, nada tem a ver com a sua forma original. Há pouco tempo, foi editada uma compilação chamada «Garage Rap» que, basicamente, não é mais do que hip-hop britânico, cujas relações com o garage e o house são apenas vestigiais, já que todos os ingredientes vêm do electro, hip-hop, r&b... o dancehall também exerce uma grande influência. Até já ouvi algumas coisas com ligações ao gabba, cheias de ruídos doentios e batidas pesadas e distorcidas. Ainda se fala do UK Garage e do house’n’garage, mas isto já é, de certa forma, uma nova cultura; muito feia, mas igualmente interessante. O MC’ing em nada se identifica com o conceito de house. Tenho ouvido muita coisa homofóbica, o que significa uma total rejeição do house. Como sou britânico, isso perturba-me mais, mas se não ponho de parte o gangsta rap (não é possível descartar esta cultura por completo, ela vem de algum sítio real, está a dizer algo)... Pinta um quadro sórdido da sociedade britânica.

É um quadro fiel à realidade?
No gansta, há sempre elementos de realismo e fantasia. Eles foram buscar inspiração ao gangsta rap inicial, ao dancehall e, se calhar, aos filmes. Mas, como se sabe, a fantasia pode ter efeito sobre a realidade – pessoas a comportarem-se como gangstas, como se estivessem num filme, pode degenerar em crimes reais. É como um loop em feedback: a fantasia alimenta a realidade que, por sua vez, inspira a fantasia. A taxa de criminalidade na Grã-Bretanha tem disparado, e o grupo de pessoas mais vulneráveis são os rapazes entre os 12 e os 18 anos – outros miúdos da mesma idade roubam-lhes os telemóveis, batem-lhes. Por isso, acho que [o quadro] reflecte algo real.

Neste momento, está a trabalhar num novo livro sobre o período pós-punk. O que é que o atraiu para esse tópico? Uma certa sensação de possibilidades sónicas deixadas em aberto desde esses tempos?
Isso, mais o facto de ter sido um período formativo para mim. Tenho 38 anos, e comecei a pensar que, se calhar, uma vida inteira a levar a música pop incrivelmente a sério não é a melhor forma de preenchermos a nossa existência [risos]. Queria regressar ao período em que decidi que era isto que queria fazer, ou seja, o período pós-punk. Nessa altura, toda a música apoiava-se numa seriedade, num espírito de missão. Estávamos a sair da era punk, e a imprensa musical estava repleta de uma escrita intensa e ambiciosa, aplicando noções bastante sérias à música. Por isso, decidi voltar atrás, para uma espécie de ajuste de contas com uma versão mais jovem de mim. Depois, andava fascinado com esse período, com a rapidez com que as coisas se processaram entre 1978 e 1983, 84, um desfile constante de novas ideias. Quando tudo terminou, as pessoas começaram a virar-se para os anos 60. Na altura, parecia a atitude correcta, e eu também alinhei nisso, mas não deixou de ser o desvanecimento de um tempo de muitas aventuras, sobre o qual, incrivelmente, ainda ninguém se debruçou – como escritor, também é preciso detectar lacunas no mercado, ou no espaço discursivo [risos]. Nunca escreveria sobre temas mais do que batidos, como o Hendrix ou os anos 60. Precisava de encontrar algo com um raio de acção que me permitisse dizer alguma coisa fresca. Pensei, «como é que ninguém escreveu sobre este período»? Não só está repleto de música incrível, como também não faltam casos de bastante sucesso: os Specials chegaram ao primeiro lugar com «Ghost Town», grupos como os ABC e os Human League alcançaram a fama em todo o mundo... Além disso, tive em conta o inevitável revivalismo dos anos 80 em curso. O livro deve sair em 2004. Actualmente, ando a investigar, e tenciono escrevê-lo no próximo ano. Espero que a onda anos 80 não tenha já desaparecido quando o livro for editado [risos]. Provavelmente, nessa altura, [o revivalismo] já deve ir no final dos anos 80.

Jorge Manuel Lopes

Além de «Blissed Out – The Raptures of Rock», recolha de artigos lançada em 1990 e mencionada na primeira parte desta entrevista, Simon Reynolds publicou os livros «The Sex Revolts – Gender, Rebellion and Rock’n’Roll», de 1995, escrito a meias com Joy Press, e «Energy Flash», de 1998, história da cultura rave e da música de dança. Actualmente, o seu trabalho surge com frequência na «Uncut» e no «Village Voice», e também chega às páginas da «Spin», «The Wire» ou «The New York Times». Boa parte deste material vai sendo reunido no seu sítio na net, http://members.aol.com/blissout/index.htm. Recentemente, inaugurou uma segunda página na web, http://blissout.blogspot.com/, espécie de diário musical de periodicidade incerta.

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